A equipe da Trip esperava, humilde e entusiasmada, no quiosque Sorriso Carioca, na praia do Recreio, no Rio de Janeiro. O simpático ator, o meio homem, meio avatar, Eriovaldo Johnson Araujo Oliveira (a.k.a. Eri Johnson) chegou mostrando-se ávido por compartilhar seus conhecimentos. Afinal, em mais de 30 anos de carreira, o homem da pinta é querido e festejado nas mais diversas tribos no Rio de Janeiro e, quiçá, no Brasil. Não havia nuvens aparentes no horizonte do nosso plano de receber diretamente das mão do mestre Johnson os segredos de fazer e manter amizades. Parecia inevitável o sucesso de nossa empreitada, o auge de um processo de três semanas em que nossa produção ficou no encalço do homem. Farejou os calcanhares, a pinta e a sunga de Eri até conseguir uma janela em sua atribulada agenda e marcar de passar um dia inteiro na sua cola. Estava no script uma programação completa, de brother mesmo. Íamos dar uma banda na praia, almoçar, até dar um rolê na noite depois... Tudo combinadinho assim. E lá estava ele, conforme os nossos sonhos. Ele, que começou dançando no programa do Carlos Imperial, nos anos 1970. Ele, o Ligeirinho em O Clone, o tresloucado Lulu em Barriga de aluguel, o Zé da Feira em Duas caras. O amigo do Zeca Pagodinho, de dezenas de atores da Globo, de cantores, de modelos, do Romário... Ele seria meu colega, jogaria futevôlei na praia ao entardecer, me apresentaria seus amigos famosos... Mal sabíamos que o que nos aguardava era uma mísera horinha de sua sabedoria seguido de um duro “perdido”. Mas deixe-me contar primeiro os meus momentos de alegria. O inesquecível Bebeto da Escolinha do professor Raimundo aterrissou na areia de bermudão, camiseta, sandália de dedo, dois celulares, barba feita e sorriso carioca. “Ontem joguei futebol até as duas e meia da manhã. Jogo toda quarta com minha rapaziada, para desestressar. É nosso dia sagrado pra bater bola, comer churrasco, jogar conversa fora... amigos são como plantas, tem que regar todos os dias”, ensinou. “Sempre falo, na nossa pelada, que quando eu digo ‘vá pra puta que o pariu’ não é pra ir. E quando vocês me mandarem eu também não vou, é só um desabafo!” Sábio ensinamento, mestre! O Gigante de Fina estampa continua: “Tenho várias galeras: a do teatro, a da praia, do futebol, da TV, a da rua, do samba, a da infância,... Hoje cedinho, por exemplo, Zeca Pagodinho me ligou dizendo que na próxima terça tem uma parada no seu quintal. O Zeca é mestre da boa convivência”. Anotado! Entre um e outro transeunte que para pra tirar uma fotinho com o astro, ele questiona: “Arthur, qual a diferença entre viver e durar?”. Peço para ele desvendar o enigma. “Tem gente que está na vida para durar. Outros, para viver”. Como uma onda, Eri domina de vez a conversa: “Se o camarada ficou doidão, muito bêbado, em nossa galera não tem aquele chato, o palhaço que cutuca dizendo: ‘Você ontem, hein?’ Isso é péssimo”. Lição assimilada! Já me sentia seu amigo quando, de repente, o gótico Reginaldo em De corpo e alma muda de assunto e nos abandona. Jura que pintou um compromisso urgente no Projac. “Vamos nos falar depois”, despede-se. Nossa produtora passou as horas seguintes tentando novo contato, sem sucesso. Só nos atendeu à noite. “Agora não dá mais, tô cansadão.” Será que fizemos algo que desagradou ao mestre? Jamais saberemos. Na falta de aulas presenciais, só me restou voltar a São Paulo, meditando em suas palavras: “Deus me marcou com essa pinta no rosto. Daí pra frente, não me preocupei com mais nada que pudesse me marcar”. No vídeo, Eri Johnson dançando discothéque no programa de Carlos Imperial: Amigo de jogadores, parceiro de atores, rei do futevôlei, Eri Johnson deve ter algo a ensinar ao nosso repórter excepcional sobre a milenar arte da convivência. Jamais saberemos, porque o amigão da geral deu um bolo em seu aplicado aprendiz...
Eri pinta e Arthur borda
Touro Indomável
No pequeno município de Serra, Grande Vitória (ES), todo mundo conhece a lenda de que, em uma de suas muitas brigas, Touro Moreno se engalfinhou com mais de 20 marinheiros na zona portuária e se livrou de todos. Touro Moreno é Adegard Florentino, 75 anos, pugilista das antigas, pai dos medalhistas olímpicos Esquiva (prata) e Yamaguchi Falcão (bronze) e de outros 16 filhos e filhas. Pois, em meio às celebrações da chegada dos dois boxeadores famosos à região, com direito a desfile em carro aberto e bajulações de políticos, estávamos nós próprios indo em direção ao bairro de Jacaraípe, em Serra, para encontrar o mito e conhecer seu clã. Fomos recepcionados com muita animação pela chuva, que ia e voltava na capital capixaba. O tempo não se firmava. Após uma hora de trajeto de táxi, chegamos à casa da família Florentino Falcão. Fomos recepcionados por Deusa, uma das filhas de Touro Moreno, que nos atualizou sobre o status de nosso personagem: “Ele deu uma saidinha”. A família almoçava na cozinha quando, de repente, fomos abalroados por alaridos de muitas vozes. Como num passe de mágica, surgiram simultaneamente nossos heróis olímpicos, Esquiva e Yamaguchi. Nelson Mello Touro Moreno Pareceu uma boa oportunidade para perguntar a eles sobre Touro Moreno como pai e sobre os ensinamentos que ele legou. Afinal, sem exageros, o patriarca pode dizer que tem grande responsabilidade pelas medalhas londrinas. Ali mesmo, no quintal de casa, Touro ensinou os primeiros golpes para os filhos. Com algumas cordas, foi ele quem demarcou um ringue no gramado dos fundos e repassou aos pequenos Yamaguchi e Esquiva as técnicas que utilizara em sua própria carreira de boxeador. O sparring era uma bananeira. Não à toa, assim que chegaram em Vitória, as medalhas foram diretamente para o peito de Touro Moreno. O pai, é bom lembrar, tem um feito e tanto na carreira: não perdeu (empatou) com Waldemar Santana na década de 1960. Alguns anos antes Waldemra havia nocauteado ninguém menos que Hélio Gracie, o patriarca da mais importante dinastia de lutadores do Brasil. Mas Yamaguchi se esquiva (rá) do assunto e prefere falar sobre o quão decepcionado está com as autoridades e os “novos amigos”. Seu irmão Esquiva solta um “direto” dizendo-se farto de tantas homenagens e eventos, quando os tão falados apoios financeiros não apareceram. Meus olhos percorrem discretamente as condições da família. Todos vivem em apertados cômodos, e o telefone de contato do pai dos medalhistas é um orelhão localizado na esquina da rua. Yamaguchi e Esquiva têm toda razão em sua crítica. Mas agora vem um jab: “A gente não suporta político querendo se dar bem em cima do que conquistamos”, diz Yamaguchi. “Quando precisávamos, eles não davam a mínima. Agora vivem batendo na nossa porta com muitas promessas e querendo sair em fotografias. Estamos cansados de tanto lenga-lenga.” E sobre o pai? “Ele é tudo!”, concordam. “Sempre torcendo, incentivando e batalhando. Um verdadeiro guerreiro Jedi, ganhando ou perdendo.” Percebo as qualidades e características de macho alfa que reverberam nos genes de todos os filhos de Touro Moreno. Todos são determinados a atingir resultados e sucesso. Nossa conversa aquece com a presença da mulher de Touro, dona Maria Olinda Falcão Gomes, 49 anos e mãe dos 11 filhos desse segundo casamento. Ela está em êxtase diante dos filhos vitoriosos e derrama-se em elogios para seu companheiro, Touro: “Ele é um grande homem, compreensivo, além de ter profetizado tudo isso que está acontecendo na vida dos nossos filhos. Estamos casados há 34 anos e já passamos muita humilhação. Meu Touro nunca baixou a guarda diante das dificuldade e estamos vivendo este momento fascinante em nossas vidas. Conforme os anos foram passando, a profecia de Touro Moreno virou realidade. Ele sempre afirmava que os meninos seriam campeões e trariam medalhas olímpicas. Que homem determinado e disciplinado...”. “Nossa vida sexual continua ativa. Normalmente, fazemos amor de duas a três vezes todas as noites e, de manhã cedo, ainda tem o complemento” O entra e sai é incessante. Depois de um par de horas sendo alvo da hospitalidade da família Falcão, entra o aguardado Touro Moreno. O homem é um caldeirão borbulhando adrenalina e testosterona, ejaculando vitalidade e alegria. Nossa conversa é toda entrecortada pela atenção aos netos, brincadeiras com os vizinhos e assuntos domésticos. Todos querem a atenção e o carinho do patriarca. Ele tem alguma coisa de capitão de navio, pois controla todas as decisões, ângulos e arestas. Seu nível de autoestima é elevadíssimo e, como exemplo típico de macho alfa, é um líder nato. Quero saber qual é a fórmula mágica da força seminal e virilidade de Touro Moreno. Ele me lança um olhar enviesado e metralha: “Minha vitalidade vem da alimentação que faço desde pequenino. Feijão, café, fubá, arroz e os ovos das galinhas caipiras são o básico da minha dieta. Fujo dos agrotóxicos. Mesmo vivendo com muitas dificuldades sempre comemos legumes e verduras orgânicas. Na horta que há em meu quintal sempre teve inhame, tomate, bananeira e outros temperos. Até a Ana Maria Braga quis saber o que eu como!”. Touro quer farrear com este repórter. Analisa meus movimentos e lança alguns cruzados e sua famosa manivela. Faço algumas esquivas e fujo de seus golpes devastadores. Touro se surpreende. Nesse momento contabilizei o valor das aulas e treinos que tive com Miguel de Oliveira no século passado. Senão, estaria até hoje no chão da sala em Serra. Sou conduzido pelo fluxo até a sala de visita. Mostro para ele uma edição antiga da Trip (fevereiro de 2004), com uma entrevista que fiz com o lendário boxer cubano Teofilo Stevenson. Touro emociona-se. Conta que seu filho Estivan teria o mesmo nome que Stevenson, mas, no cartório, decidiram de súbito abreviar o nome. Aproveito o momento de intimidade para perguntar sobre sexo. Touro comenta que começou com a mulherada aos 12 anos. Sempre foi viril e garante que continua mandando ver até hoje. “Arthur, temos uma vida sexual que continua ativa. Normalmente fazemos amor de duas a três vezes todas as noites e, de manhã cedo, ainda tem o complemento matinal.” O Touro continua furioso! Dona Maria sorri e confirma a performance diária de seu amado. Uma multidão de amigos, curiosos e familiares se aconchega nos cômodos da casa. Nosso tempo estava esgotado. A família agradece e se despede de nossa equipe. Já de saída, escuto ao fundo Touro dizer a um grupo de pessoas que sempre ensinou seus filhos a nunca desistirem de seus objetivos e metas. Os machos alfa amam o sucesso e são viciados em adrenalina. Touro Moreno é um grande representante dessa espécie.Sempre em busca de novos limites de virilidade, Arthur Veríssimo ruma ao encontro de Touro Moreno, pai dos medalhistas Esquiva e Yamaguchi Falcão. E também de outros 16 filhos
Kevin Costner da Caatinga
A vida é um contêiner de surpresas e eis que, desta vez, me apanho em ambiente inóspito, como parte de uma egrégora de seguranças vestidos com sua clássica indumentária, a saber: terno escuro, gravata lisa, sapato engraxado e, o mais importante de tudo, o carão. A única coisa que me diferencia de meus colegas é minha cabeleira, que não segue o padrão cabelos rentes e aparados da Forceseg, empresa que presta serviço de segurança pessoal. Tento disfarçar a juba, que parece um xaxim da Serra da Mar. Afinal, sou integrante do time. E nossa nobre função é zelar, veja você, pela integridade da dupla romântica Zezé Di Camargo & Luciano. Atento, acompanho sem piscar os olhos as orientações sobre como proceder. O líder, Weder Godoi, delega as tarefas antes de cada show. O time é composto de cinco homens (sou o sexto elemento). Leais, treinados, disciplinados e prontos para qualquer situação. Recebo, atento, a minha missão: acompanhar e observar o zum-zum dos fãs diante da movimentação no palco. Até aquele momento, os ídolos sertanejos ainda não haviam chegado ao Credicard Hall. A expectativa é aparentemente tranquila. Sou convocado para fazer uma ronda com meu novo colega, Rafael Krewer, pela parte interna do Credicard Hall, entre as mesas e o palco. Rafael é meticuloso com as estruturas e o posicionamento das cadeiras e mesas próximas ao palco. Depois de analisar milimetricamente e aprovar, acerta os últimos detalhes com a chefia de segurança da casa de espetáculos. Até o presente momento, tudo está nos conformes. Pelo rádio, Krewer recebe a informação de que a dupla vendedora de 36 milhões de discos já está nas proximidades. Sigo os passos determinados de Rafael e me posiciono atento diante dos camarins. Luciano é o primeiro a se aproximar, com um largo sorriso exalando simpatia e camaradagem. Na sequência, surge Zezé, rodeado de seu séquito de amigos e convidados. Durante um bom tempo fiquei como um obelisco, postado diante do camarim olhando o comportamento das privilegiadas fãs – raras são as que conseguem falar com os ídolos antes dos shows. Luciano atende algumas delas e, em seguida, vem trocar prosa conosco, os seguranças. “Eu e o Zezé temos dois seguranças fixos, o Alex e o Sebastião”, conta. “Quem manda na nossa vida são eles. Muitas vezes, tenho que aguardar no carro ou em casa até receber o sinal verde do Alex. O Sebastião está comigo há 14 anos. Dirige pra mim, respira o ar que eu respiro.” Luciano conta que eles passam por cursos e treinamentos especiais. Recentemente, estiveram na SCAP Táticas Defensivas, uma escola em Castanhal, interior do Pará, considerada uma das melhores do mundo. “Sou disciplinado para obedecer aos seguranças. Aqui a gente conversa, ri, brinca, mas as situações do dia a dia são bem mais complicadas do que as dos shows.” Zezé se aproxima e complementa: “Nas viagens, eles precisam estar em estado de alerta 24 horas ao redor dos nossos movimentos. São os seguranças que coordenam a logística em todas as cidades e casas de espetáculo onde nos apresentamos”. Mãos à obra Rafael Krewer me chama para a última inspeção antes do início do show. “Não cruze os braços” – ele chama a minha atenção para os detalhes. “As mãos têm de ficar entre o umbigo e a genitália, e aquela mais habilidosa por baixo.” Acaba de cair o mito de que segurança bom é segurança marrento, de braços cruzados. Outra dica: ficar atento às mãos de quem se aproxima. “O que agride não são os olhos, são as mãos. E não importa o público, por mais que o conheçamos, não podemos nos descuidar das mãos. Um bom segurança não impede a plateia de se aproximar do artista. Só não pode puxar cabelo, arrancar roupa, morder.” Chega de teoria: os portões foram abertos e, minutos depois, duas ardorosas fãs já estão grudadas no pescoço de Rafael. Querem, desesperadamente, ver, fotografar, tocar em seus ídolos. É a hora de o meu tutor mostrar sua sapiência. Rafael dá o mapa da mina e explica que há uma assistente da dupla, chamada Camila, a quem foi delegada a missão de agendar os encontros no camarim após o show. Educado, mas encerrando o assunto, Rafael passa o telefone de Camila às fãs e rapidamente se coloca a postos para o show que vai começar. Por um bom tempo fiquei como um obelisco, postado diante do camarim, olhando o comportamento das fãs O chefe de segurança do Credicard informa que está tudo OK. Pelo rádio, Rafael dá o sinal verde para Weder. As cortinas sobem e as explosões de luzes e percussão introduzem “Sonho de amor”, sucesso recente da dupla. Àquela altura do campeonato, já havia incorporado o Kevin Costner da caatinga. Meu olhar de águia repousava sobre a plateia, detectando como por instinto os movimentos das mãos das cercanias. Os filhos de Francisco soltam a voz e o show esquenta. A interação entre artistas e público é impressionante, mesmo para quem não é muito afeito ao pop romântico de herança sertaneja. O êxtase é coletivo, mas devo manter a compostura. Sou um totem entre os seguranças da casa, impávidos, de costas para o palco e atentos ao público. Flashes disparam, celulares captam imagens. Explode o coral feminino de centenas de vozes. Lágrimas vertem de olhos apaixonados. Famílias se abraçam, casais se entrelaçam e se beijam. Nada disso importa. Meu negócio é olhar para as mãos. Um de meus colegas me dá a deixa para ir à outra extremidade do palco. No trajeto, uma senhora me aborda e, com muita delicadeza, pede para ver os ídolos. Essa merece: veio de Manaus especialmente para assistir ao show e, quem sabe, trocar algumas palavras com a dupla. Conforme o exemplo de Krewer, passo o telefone de Camila e dou as orientações devidas. O olhar da manauara é de uma criança agradecida. Recebo a orientação para ir até os camarins. Zezé está empreendendo uma troca de figurino e minha missão é me posicionar em um ângulo tal que evite surpresas, como alguma fã surgindo do além. Vestido, antes de retornar ao palco, Zezé interrompe seu trajeto e, sério, para ao meu lado e me pergunta: “Arthur, o que eu faço agora?”. Por uma fração de segundo, fico travado. Zezé solta uma sonora gargalhada e entra no palco. Ufa, posso seguir minha ronda. A plateia se alvoroça com os mega-hits “É o amor” e “Menina veneno”, mais explosões de luzes e cores e pronto. Quatro horas depois de começar minha saga de segurança, a missão está cumprida. Zezé Di Camargo e Luciano voltam inteirinhos para seus respectivos lares, ovacionados pelo público. E eu me preparo para repousar meu corpo moído, com a certeza de sonhar com as mãos e mãos que ficaram gravadas na minha retina.Em mais uma missão adrenalizante, nosso repórter excepcional se infiltra no preparadíssimo time de seguranças de Zezé di Camargo & Luciano e, com a galhardia que lhe é peculiar, não deixa o show parar
O chacra da pança
Silvio Fatz
Arthur com Sri Prem Baba
Caminho a passos largos diante do tsunami de seres humanos que circulam no vaivém do Khumba Mela, festival hinduísta que toma, de tempos em tempos, a cidade de Allahabad. Sou deslocado pelo frenesi da massa humana que se espreme no setor três, músculo cardíaco deste organismo com mais de 70 milhões de pessoas. Um êxodo bíblico de proporções inimagináveis. Nesta área, encontra-se o suprassumo dos saddhus (homens santos), dos peregrinos e das organizações religiosas milenares. Minha energia circula livremente, como um rio límpido, observando comportamento, visual, postura e hábitos dos gurus e do povo em geral. Detecto que uma parte dos homens carrega uma barriga avantajada. Mesmo os magrinhos cultivam uma pancinha desequilibrada. Sinto minha barriga tremer de emoção e percebo que o terceiro chacra, o manipura, se manifesta. Controlo fazendo algumas contrações e exercícios respiratórios. Pela graça divina das águas do Ganges, não existe nenhum problema gástrico. Do setor três, me desloco para a beira do rio Yamuna e atravesso solenemente de barco para o setor 13, onde estou acampado. Ali está concentrada a sangha (família espiritual) e os discípulos do guru Sri Prem Baba, brasileiro que virou guru e que entrevistei para a Trip há três anos. Tenho um encontro ao cair da tarde com Sri Prem Baba e, aproveitando o ensejo, pergunto justamente sobre o funcionamento do chacra do umbigo.
Silvio Fatz
Arthur com amigo no festival Khumba Mela, na cidade de Allahabad
Qual a função do terceiro chacra?
O terceiro chacra, conhecido como chacra solar, é a sede do poder. Quando está ativo e girando no ritmo adequado, o ser humano manifesta o poder em sua forma pura. O poder que constrói, que está a serviço do amor, que pode gerar união, saúde, realização. Ao mesmo tempo, ele é a sede do ego. Quando seu poder está contaminado pelo egoísmo e pelo ódio, seu filho predileto, torna-se destrutivo. Vira agressividade, violência.
É um chacra vulnerável? Podemos neutralizar esse efeito com exercícios?
Ioga e taichi ajudam a fortalecer esse centro de energia e os órgãos relacionados a ele. Mas o que realmente possibilita que o terceiro chacra gire da forma correta é o autoconhecimento: identificar os aspectos da personalidade que distorcem esse atributo divino e, em seguida, realizar o árduo trabalho da transformação.
Os sintomas negativos são raiva, medo e problemas digestivos?
Fisicamente, esse chacra comanda o aparelho digestivo, e o estômago é seu principal órgão. Então, quando seu poder é usado indevidamente, há tendência a problemas gastrointestinais: os órgãos da região ficam enfraquecidos. Mas o principal aspecto nocivo é o uso indevido do poder.
As emoções ficam comprometidas?
E a ação também. A ação é fruto do poder. Se o poder é contaminado pelo ódio, a ação também é. Estamos falando da energia masculina, do poder de ação. Muitas vezes, para não gerar destruição, a pessoa se paralisa. Ela sabe o que precisa fazer, mas não consegue. Isso pode ser entendido como preguiça, depressão, falta de entusiasmo. Mas é um mecanismo autorregulador: ela sabe que, se fizer, vai gerar destruição. Muitos indicam exercícios físicos, energéticos, respiratórios e posturas de ioga que ajudam a reequilibrar o chacra. Mas essa melhora é temporária, porque estamos tratando o sintoma e não a causa. Para que haja solução definitiva, a pessoa tem que ter disposição para voltar a atenção para si mesma e entender o que está gerando o distúrbio.
Notei que aqui há homens hindus com pança avantajada.
[Risos] Você sabe que existe um ditado por aqui que diz que todo guru tem tendência à pancinha? Porque ele relaxa demais e o abdome relaxado tende a crescer.
Existe diferença entre o terceiro chacra nos homens e nas mulheres?
Não. Tanto na mulher quanto no homem é o chacra do poder e do ego. Mas a distorção do poder masculino é a agressividade, enquanto a do poder feminino, além da violência, pode ser a vitimização, a submissão.
Quem come muito pode fazer isso por desequilíbrio desse chacra? Ele tem relação com o prazer de comer?
Tem. Quando existe a distorção desse atributo divino que é o poder, quando o ego está no comando, há ansiedade, essa certeza de que falta algo que não se sabe o que é. É muito fácil preencher esse vazio com comida. O ser humano é educado assim. Sempre que tem um desconforto, vem um docinho, uma comidinha. Assim ele tenta fugir da angústia existencial de não saber quem é, de estar sob a tirania do ego.
Arthur com amigos no festival Khumba Mela, na cidade de Allahabad
El cuero se va comer
Desacelero meu passo e deslizo meu olhar pelo majestoso horizonte. O cenário do altiplano andino é lunar. Tal deleite me leva a outra dimensão. Uma energia sobrenatural invoca em mim a vontade de caminhar e sigo pela crista da montanha. Hesito e paro um instante. Adiante, avisto uma imensa pirambeira. Sem fôlego, respiro profundamente para alinhar-me novamente. Estou a mais de 3.800 metros de altitude, subindo a ribanceira até o pequeno vilarejo de Pucamayo, um inóspito local (fora de qualquer mapa) ao norte de Oruro e ao sul de Potosí, na Bolívia. O objetivo é gravar um dos nove episódios de Na fé com Arthur Veríssimo, série que protagonizarei no Discovery Channel (mais informações ao fim do texto), na qual me jogarei de cabeça em cerimônias religiosas bizarras espalhadas pelo globo. Chego de mansinho e sou recebido pelo líder do clã do vilarejo, o guerreiro Jose Cruz. Acompanhado de seu irmão Carlos, traz consigo um punhado de folhas da coca, uma oferenda para este incauto peregrino. Coloco as hojitas com delicadeza entre a bochecha e os dentes. Um caldo doce é destilado em minha boca. O imediato soroche (mal das alturas), que causa estragos a muitos viajantes, é eliminado em um átimo de segundo. Os hermanos Cruz levam-me para conhecer a comunidade e explicam o significado da festa El Tinku e sua relação com Pacha Mama, a Madre Tierra, principal entidade divina dos povos dos Andes. Nossa conversa é entremeada pelo vai e vem de conselheiros e anciões de Pucamayo. Todos estão possuídos com o advento de El Tinku, que significa “encontro” na língua quéchua e “ataque físico” em ayamara. O ritual sacia a sede de Pacha Mama, serve para agradecer pelas colheitas passadas e solicitar bênçãos para as futuras. Segundo os costumes e tradições, a briga garante o sangue que deve ser derramado como sacrifício e oferenda à Madre Tierra. A devoção é completada com muita música, dança, chicha, álcool, porrada e delírio. Quase necessariamente nessa ordem. Carlos Cruz apresenta um kit de armas seculares de seu povo, atualmente proibidas no Tinku. Estilingues, boleadeiras, chicotes e outros artefatos belicosos. “Às vezes usamos para derrubar o adversário”, diz Carlos, com um sorisso cabuloso. Um capacete estiloso de couro me chama a atenção. Coloco o casco e o bestial Carlos joga uma pedra em minha cabeça para mostrar a pseudossegurança do capacete. Fico cabreiríssimo com a atitude desmesurada do insano. Jose pede desculpas pela estupidez de seu irmão, que exala tranquilidade. Demência explosiva. Jose, exibindo um olhar de predador, diz que bate sem dó nem piedade em qualquer pessoa que estiver na Praça de Mancha - e que todos correm, sim, risco de vida No dia seguinte, meus tresloucados anfitriões me levam para onde está sendo finalizado o néctar da festa. Uma destilaria artesanal onde é preparada, fermentada e produzida a chicha. A chicha morada é uma bebida fermentada (e bem alcoólica!), à base de milho, canela e outras especiarias. Imensos tachos e caldeirões estão guardados para a festa do Tinku. Estou ressabiado com o que irá acontecer no encontro final, na batalha campal. Como é possível uma festa religiosa, de comunhão com a natureza, no qual o êxtase seja uma luta violenta e sangrenta? Falta de refinamento espiritual ou tradições milenares preservadas na sua forma original? Jose, exibindo um olhar de predador, diz que bate sem dó nem piedade em qualquer pessoa que estiver na praça de Macha – e que todos correm, sim, risco de vida. Questiono se tudo não é uma desculpa para resolver questões pessoais. Ele ri. E me deixa inquieto, acrescentando que todos sabem que alguém irá morrer na festa. Todo ano é assim. Peço aos irmãos Cruz para fazerem uma demonstração da luta. Percebo que não existem regras ou limites: os socos são distribuídos de todas as formas e jeitos sem parar. O que vale é nocautear o adversário. Entro para o corpo a corpo e Carlos (a besta) é novamente agressivo além da conta. Estou preparado e me esquivo da violência – antes de vir para a Bolívia, havia feito treinamento de defesa pessoal, muay thai e boxe com meu sensei Marcão Zakir. Percebi que a porradaria, virilidade e barbárie seriam o tom da festa do El Tinku. As atividades se aceleram e incendeiam. Observo o zum-zum-zum enquanto um casal de ovelhas é sacrificado com brutalidade e alegria ao mesmo tempo. O ambiente é de extrema embriaguez. Repentinamente, uma dupla de encachaçados tenta pintar meu rosto com o sangue dos animais. Saio mais rápido que o Papa-Léguas e sumo de cena. Acordo em estado de alerta e sigo para Pucamayo. Hoje é o dia D. No vilarejo, Jose Cruz e o conselho dos anciões me oferecem o figurino completo de guerreiro, incluindo capacete, adereços, penacho e flauta andina. Estou vestido a caráter e participo dos rituais preliminares. Todos se divertem, fazem troças, bebem enlouquecidamente e dançam. Na muvuca, um grupo de fanfarrões gruda na minha jugular. Recebo tapinhas, tapões, chutes e provocações contínuas, até que dois tipos resolvem me açoitar. Perco o controle e passo uma chinela, uma rasteira, em um dos sem noção. Ele se estatela no solo sagrado. No ato levanto o tiozinho e mudo a vibração dando abraços e saindo de fininho. Por incrível que pareça, havia mergulhado no atalho da violência. Percebi que estava sendo contaminado pelo vírus da maldade. Clamo por Gandhi, por ahimsa (não violência). Mea-culpa. Reconheço minha estupidez entrando na vala da ignorância. A porradaria se instala. Míseros 32 policiais formam a equipe de contenção do ímpeto da crueldade de milhares de pessoas Minha reflexão serve apenas para mim, pois o clã da família Cruz continua se encharcando de chicha e de singani, uma bebida ainda mais explosiva. Iniciamos nossa descida marchando ao som do jula-jula com charangos e flautas. Por todas as montanhas e desfiladeiros, mais de 200 comunidades fluem em legiões de guerreiros ávidos pela batalha na praça de Macha. Trotamos unidos por 5 quilômetros até o epicentro do holocausto. Milhares de indígenas com suas roupas coloridíssimas bailam e cantam hinos em louvor a Pacha Mama. Um corre-corre frenético despenca pela ruela ao lado da praça. Policiais lançam bombas de gás lacrimogêneo para dissipar uma briga coletiva que se inicia. Fico grogue e com os olhos marejados. Ao lado da igreja, policiais tentam organizar o caos das primeiras brigas individuais. Na base do chicote e do empurra-empurra, montam um ringue com a massa humana. A porradaria se instala. Míseros 32 policiais formam a equipe de contenção do ímpeto da crueldade de milhares de pessoas. Vejo Jose Cruz distribuindo socos, cotoveladas e pernadas. Como uma arma letal, ele derruba o adversário e salta do ringue no encalço de outro guerreiro. Os policiais não conseguem acalmar a multidão. Um grupo de bêbados chuta um homem que está estatelado no chão, sangrando copiosamente. A confusão toma uma escala inimaginável. Policiais lançam outra bomba de gás lacrimogêneo. Os índios se enfurecem e ficam ainda mais agressivos. Sou alvo fácil para as comunidades que avançam por todos os quadrantes da praça. Corro para a delegacia e me dispo das roupas e do capacete. Um policial com lágrimas nos olhos me diz que não dá mais para controlar. Turistas, crianças e autoridades assistem às cenas sem se incomodar. Vibram com o sangue espirrando dos rostos. Nenhum local é seguro. Um turista toma uma voadora e tomba inconsciente. Sim, violência gera violência. Pra que isso? Tanto sangue e raiva paralisam a mim e à equipe. A única certeza que tenho é que esta briga não é minha. Pacha Mama, para que tanta selvageria?Despachamos nosso repórter até Pucamayo, nas profundezas da Bolívia, onde, uma vez por ano, mais de 200 comunidades andinas se encontram para dançar, beber e cair na mão (sangue & morte inclusos). Arthur apanhou – mas também bateu
A dama e o vagabundo
Em minha extensa cauda histórica na Trip, tive o privilégio de compartilhar momentos e páginas com musas, beldades, anarquistas, pitonisas... Da cantora Rosana, de “Como uma deusa”, à Narcisa “Ai, que loucura!” Tamborindeguy. Da Gisele Bündchen, ainda em início de carreira, à papisa do universo fashion Costanza Pascolato. Nesta edição, a redação me convidou para passar um dia ao lado da arquiteta, decoradora e personagem coruscante da série Mulheres ricas: Brunete Fraccarolli. Combinamos uma troca de experiências sensoriais e vivenciais que fazem parte de nossa rotina. Brunete, tal qual uma imperatriz, me convidou para conhecer seu feudo – seu escritório, no caso –, suas coleções, fazer uma degustação de caviar e champanhe. De minha parte, decidi oferecer uma manhã de prática de ashtanga ioga e um café da manhã orgânico e suculento em um lugar paradisíaco, nos arredores de São Paulo. Marcamos nosso encontro às seis da manhã na subida da Serra da Cantareira. O caminho é um conto de fadas urbano. Como num passe de mágica, estávamos na densa floresta respirando ar puro, prontos para iniciar os primeiros asanas no Centro Vidya, encravado nas bordas da serra. A sala pulsava energia. Um grupo de mais de 20 praticantes bombava e suava por todos os poros. Brunete se mostrava disponível e seguia as orientações do professor Cristovão de Oliveira. A pequena imperatriz se esticava, puxava e pedia explicações ao focado instrutor. No entanto, na hora de uma postura um tanto intrincada, coitada, acabou caindo em cima do mestre. O revés talvez tenha reduzido seu ânimo. Depois de cerca de 20 minutos conosco, Brunete abandonou a sala. Eu fiquei na minha e concluí a prática. Encontro-a tagarelando com algumas das yoginis. Estão todas devorando uma imensidão de iguarias divinas e orgânicas. Tapiocas, sucos, pães, geleias, chás, cafezinho, queijos e frutas enchiam a mesa central. Comi e bebi de tudo. Brunete borbulhava de felicidade por ter saído da sua rotina e ter se permitido experimentar um momento de tranquilidade e muito tônus logo pela manhã. Nossa descida para São Paulo foi outro passe de mágica. Todos os caminhos e faróis se abriam ao longo das encruzilhadas. Chegamos nos Jardins, zona nobre paulistana onde ela mora, rapidinho. Na portaria, fomos recebidos pelos funcionários com extrema educação e garbo. Brunete havia chegado antes de nós e permaneceu alguns minutos no quarto, onde era arrumada por Thiago, seu valet, maquiador, cabeleireiro e amigo, que nos acompanhou durante todo o dia. Ela desfaz a escova que havia feito para a aula de ioga e enrola as madeixas com um Baby Liss. Sai do quarto vestida como uma perfeita Barbie, com a inseparável Sissi, uma maltês que está com ela há mais de 14 anos, a tiracolo. Sissi tem uma vida classuda. Vai ao acupunturista e é habituée de pet-shops. Brunete é loira, linda e tem pés de princesa. Calça 33, o que faz com que muitos de seus sapatos fiquem sobrando. Diz que não é muito chegada em sapatos nem em roupa. Que, sempre que compra uma peça nova, retira uma velha do armário e faz uma doação. Champa & caviar Não sou nenhuma grande autoridade em design, mas impossível não notar a cadeira Banquete, criação dos irmãos Campana, em sua sala de visitas. Na casa, há ainda o modelo Cone, também dos designers paulistas, além de uma cadeira de papelão (!) desenhada por Frank Gehry e outra transparente, de policarbonato, obra de Phillip Starck. Como um magneto, a Banquete me acolhe com seus bichinhos de pelúcia. Na sala envidraçada, Brunete nos oferece uma geladíssima champanhe Moët & Chandon Reserva Rose Brut. Brunete convoca Thiago para registrar o momento que se seguiria. De fato, merece o clique: como uma samurai, ela pega um sabre, dá um golpe preciso no gargalo e abre a garrafa. Brunete abre as cortinas, revelando sua imensa coleção de Barbies. Perfiladas como os soldados de terracota de Xian do imperador Qin (tudo bem, pode dar um Google nisso), as Barbies exalam os sonhos da colecionadora. Vestuário, visual, coloração e adereços das bonecas têm significados particulares. O santo graal da coleção é uma Barbie feita exclusivamente para ela, igualzinha à imperatriz. Como uma estrela, ela fugazmente entra em outra dependência de seu apê. Espero um longo período. Com muita desenvoltura, Thiago me abre alguns armários e mostra agora a coleção de garrafas d’água de sua patroa. São mais de mil. Tem água de geleiras, água de chuva, todas com um design diferente. Tudo muito bonito. Mas a fome rondava meu aparelho. Eis que Brunete retorna com o terceiro look do dia, exibindo um coque à la Grace Kelly. Iluminada, diz: “Arthur, quero que você conheça meu escritório do outro lado da rua. Na sequência, iremos ao hotel Emiliano fazer uma degustação de caviar e bebericar outros champanhes. Que tal?”. Brunete é assim, gosta de celebrar a vida. Pergunto a ela se seu dia a dia é sempre assim. Ela desbarata e, com um vestido assinado por Ronaldo Fraga e um anel de tanzanita, entra no elevador. Seu escritório é rosa translúcido, com tons pastel. Ela me apresenta os aromas das essências que ela desenvolve. Aromas naturais de abacaxi, limão frumelo, framboesa e uva. Tudo bem doce, como a pequena Brunete. No Emiliano, requintado restaurante localizado em um hotel homônimo, uma imensa mesa nos aguardava com algumas porções de acepipes. Nossa conversa espumava champanhe e histórias de viagens. Degustávamos um delicioso caviar russo Petrossian, acompanhado de creme azedo e blinis (uma espécie de crepe). Num átimo de segundo, duas garrafas de Perrier Jouet são abertas. Outra bandeja com diversos canapés é servida. Nela, pesto de nozes, tomate confit com queijo Grana Padano, tapenade de azeitonas e salmão defumado nos aguardam. Num dado momento, começamos a falar sobre animais. Gargalhando, Brunete contou que no primeiro casamento, aos 18 anos, foi morar perto de Conceição de Araguaia, entre os estados de Goiás e Pará. Em um passeio, viu um pequeno gatinho solitário e se encantou pelo felino. O gatinho foi crescendo, crescendo até que ela percebeu que se tratava de... uma onça. Com muito pesar, doou a fera para um zoológico. Na hora da despedida, não me contive: fiz como ela fez com o gato que não era gato e a peguei no colo. Brunete não esperava por essa. Mas que gostou, gostou.Um troca-troca improvável entre nosso repórter excepcional e a esfuziante Brunete Fraccarolli. Entre caviar e ioga, os opostos, por fim, se atraíram
Marcado na pele
Revisito minha infância caminhando pela rua Francisco Otaviano, artéria vital entre o Arpoador e Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Tudo ali continua nostálgico: o forte de Copacabana, o visual, as pedras, as árvores, o mar e o edifício onde nasci – da maternidade, fui direto com meus pais para o número 60 dessa rua. O visual do imóvel é o mesmo, com suas características antigas e o gramado impecável. Identifico a janela no quarto andar, onde me esgueirava quando pequeno. Como é prazeroso nostalgizar e voltar aos lugares onde a vida foi desfrutada com muita intensidade. Uma onda de contentamento invade meu espírito. Sinto-me revitalizado, resgatando as raízes e a vida nesse cantinho de Copacabana. Minhas memórias se aquietam. Tenho um compromisso em frente ao edifício. O local é a mitológica e pioneira Galeria River, meca das primeiras lojas de surf, skate e esportes de ação no Rio e no Brasil. Ela já existia no comecinho dos anos 70, quando gente como Caetano Veloso, Gal Costa, Elis Regina e Jorge Ben Jor frequentava a primeira loja alternativa de lá, a AnikiBobó, famosa pelas calças coloridas boca de sino e pelos cintões. Ao lado dela, estavam um açougue, uma lavanderia, uma casa lotérica e outros estabelecimentos do gênero. Na virada dos 70 para os 80, com o fortalecimento da cena do surf na cidade, as lojas do ramo começaram a dominar a galeria. Hoje, ela é quase um minishopping com diversas lojas de identidade semelhante, focadas no público jovem. Sua localização é nevrálgica, dando continuidade ao calçadão que liga o Leme ao Leblon. Seres humanos de todas as quebradas do Rio e do planeta passam por ali. O zum-zum-zum é intergaláctico. A fauna das criaturas é um caldeirão de etnias. Procuro na galeria um dos estúdios de tatuagem mais antigos do Brasil, há 35 anos instalado na Galeria River: é o legendário Caio Tattoo. Na frente da fachada da loja, um enorme painel brinda os clientes e curiosos com fotografias de Caio ao lado dos mais notórios tatuadores do mundo. Vejo, por exemplo, uma foto de Caio colado com o mestre dos mestres, Horiyoshi, ainda na puberdade. A antessala da loja está lotada de clientes. O clima é de contentamento, curiosidade, desejo. Todos querem ser tatuados. Num canto, observo nosso anfitrião explicar com detalhes os cuidados higiênicos que o recém-tatuado tem que ter com sua pele. Caio se aproxima e iniciamos nossa conversatina. Seu corpo ostenta trabalhos de Filip Leu, Tin Tin, Maurício Teodoro e outros monstros. Ele olha minha pele e cirurgicamente identifica trabalhos de Maurício, Marco Leone e exclama: “Caramba, você tem um Horiyoshi!”. Mostro para ele minha primeira tattoo, realizada pelo ancestral Fred. Caio levanta a manga e revela um desenho do mesmo Fred, feito no início dos 80. Estou em casa. O fluxo da loja não para. Gente entrando, marcando hora e sendo tatuada. Os negócios, ao que parece, seguem de vento em popa. Sou conduzido por Caio a uma pequena loja, que mais parece os clássicos vestíbulos do Red Light District de Amsterdã. Só falta sair uma beldade fazendo striptease. O local é o casulo onde Caio trabalha e guarda uma infinidade de álbuns de fotografias. Nossa conversa é permeada por lembranças dos primórdios da tatuagem artística no Brasil. À medida que vou viajando no maravilhoso arquivo, Caio vai contando histórias e causos. Ele afirma que essas e outras personalidades foram responsáveis por tirar a tatuagem da marginalidade. Além da familiaridade e camaradagem espontânea em nossa entrevista, percebo que ele parece com alguém. Sim, Salabim! Ele é a cara e o cavanhaque do movie star Al Pacino! Caio nasceu em 1951, em São Paulo, mas mudou com 10 anos para o Rio. Ele não se faz de rogado e conta com profunda emoção o início de sua saga: “Os pioneiros no Rio foram eu, o Thyes e o Boris. A tatuagem começou na minha vida em 75, mas o despertar foi em 73, quando percebi algumas pessoas tatuadas na praia. Um sujeito chamado Sabiá apareceu com um trabalho colorido e disse que havia feito com o Lucky, em Santos. Fiquei determinado. Minha cabeça não parava de borbulhar de vontade e me despachei para lá”. Fast-food A viagem mostrou-se uma epopeia. Tatuagem naquela época só existia no cais do porto, era coisa da marginália e de marinheiros. Hoje em dia, virou um modismo efervescente. “Tem mais loja de tatuagem do que farmácia”, diz Caio, para em seguida voltar ao túnel do tempo: “O surfista e ‘menino do rio’ José Artur Machado, o Petit, foi um dos garotos de boa aparência que deflagraram a tatuagem, com seu dragão tatuado no braço por Lucky Tattoo, imortalizado por Caetano Veloso. Depois, alguns surfistas surgiam com tatuagens de panteras, cogumelos, flores e outros símbolos da contracultura. Eu precisava de uma máquina. Arrumei um barbeador e adaptei, tipo MacGyver. Dois anos depois, um amigo foi para Nova York e trouxe minha primeira maquineta”. No começo o grosso da clientela eram os marinheiros, tanto os brasileiros quanto Caio é um ícone da contracultura tupiniquim. Convive como um camaleão com a galera de todas as gerações do surf, de esportes de ação, música, artes marciais e capoeira. Durante muitos anos, foi parceiro do mestre de capoeira Camisa e é sensei nessa arte. Suas duas profissões foram tratadas com preconceito durante muito tempo. Agora, são o suprassumo do estilo de vida e sonho de muita gente. Para registrar nosso encontro, pedi para ser tatuado. Escolhi um pequeno símbolo que diz respeito ao meu pai.Caio Tattoo realizou o sonho de viver de tatuagem numa época em que sua arte era coisa de marginal. Rabiscou Monique Evans, Rita Lee e, agora, Arthur Veríssimo também, que foi até o Rio conhecer o cara e relembrar sua infância, passada bem em frente ao estúdio de Caio
Vejo imagens de Lucky Tattoo, de Santos, provavelmente o primeiro cara a levar a tatuagem a sério no Brasil, e de vários outros pioneiros do Rio e de São Paulo. Encontro registros da Tattoo You, de Marco Leone, no bairro paulistano da Vila Madalena, por onde passaram tatuadores como Chichio, Fred Gregersen (filho de Lucky), Luiz Segatto, Hercoly, Genziana e tantos outros. Há ainda uma belíssima Monique Evans e o casal Rita Lee e Roberto de Carvalho sendo tatuados por Caio.
os estrangeiros. Hoje, dá de tudo em sua loja. “Banalizou. Todos os acessórios estão disponíveis na internet. A loja de tatuagem mais parece rede de fast-food”, solta. Sinto a nostalgia pegando fundo na alma do mestre Caio, tal qual acontecera comigo ao reviver minha juventude carioca. Ele reafirma que no passado existia a magia da peregrinação, de ir até o estúdio distante do tatuador: “Os tempos são outros. No século passado, existiam respeito e hierarquia entre os antigos tatuadores, assim como os códigios de ética dos samurais. Hoje em dia, tatuador virou artista, designer, estilista, joalheiro... esqueceram o ofício. Muitos se acham Leonardo da Vinci, Vik Muniz”.
Vale a pena ver de novo
Vivemos em um período em que a cultura, diferente do que antes tinha esse nome, deixou de ser elitista, erudita, excludente e transformou-se em genuína cultura de massa. Hoje vivemos a primazia das imagens sobre as ideias. O domínio absoluto de cinema, televisão, espetáculos e internet. Estamos sempre ligados, sintonizados com a novidade não importa qual, contanto que seja nova. Neste universo de modismos passageiros, a publicidade não só é parte constitutiva da vida cultural, como também seu vetor determinante. Ela exerce influência decisiva sobre os gostos, a sensibilidade, a imaginação e os costumes de todas as camadas sociais. Essa função, que no passado era desempenhada por sistemas filosóficos, crenças religiosas, ideologias e doutrinas, hoje é exercida principalmente nas agências de publicidade. Basta dar uma zapeada pela TV para perceber isso. A maioria dos comerciais é estrelada por atrizes, jogadores de futebol, cantoras, modelos, humoristas e apresentadores de TV. Não digo que isso seja ruim; digo simplesmente que é assim. São raras as campanhas com anônimos. O que vale é o sucesso comercial imediato do produto. Na maioria das vezes, o bom é o que tem sucesso; mau é o que fracassa e não conquista o público. Nesse caleidoscópio de marcas, decidimos conhecer dois ícones da publicidade que saíram do anonimato para o mundo das celebridades: o Baixinho da Kaiser e Sebastian da C&A . Marcamos um encontro no Mercado Municipal de São Paulo, músculo cardíaco da capital. Já na entrada, vejo o Baixinho envolto por uma pequena multidão de fãs. Como Sebastian está a caminho, aproveito o embalo para conhecer os bastidores e as intimidades da ascensão de José Valien Royo, “nascido em Barcelona, mas brasileiro de coração”. Antes da fama, ele era motorista freelancer. Mas, como prestava serviços para agências de publicidade e sempre esbanjou simpatia, costumava ser chamado para fazer pontas em diversos comerciais. S ua história com a Kaiser começou em 1986. José Zaragoza, um dos donos da agência DPZ, foi com a sua cara e o colocou no set de gravação de um comercial teste para a marca, que ainda não era cliente da agência. “Todo mundo seguia uma coreografia, mas eu simplesmente não conseguia fazer os movimentos. Pensei até em desistir. Uma hora, o Zaragoza gritou lá do fundo: ‘Pessoal, é isso aí, filmagem acabada. O que é certo dá errado e o que é errado dá certo’.” Não precisamos nem dizer que, de fato, tudo deu muito certo. A Kaiser assinou com a DPZ. E José virou o Baixinho. A boina, uma das marcas registradas do personagem, também surgiu por acaso. “A luz dos refletores batia na minha careca e refletia. Peguei a boina emprestada do diretor”, conta. O primeiro comercial foi gravado em um banheiro. Um monte de gente usando os mictórios e o Baixinho na dele, urinando sem parar. “Só pode ser Kaiser”, alguém comentava. O filme ganhou o Leão de Ouro no Festival de Publicidade de Cannes. “Mesmo depois dos comercias, continuei trabalhando de motorista durante um ano. Hoje agradeço profundamente à Kaiser pela minha independência financeira.” “O namoro com a Karina Bacchi me colocou na crista da onda" A relação com a marca durou até 2002. Depois, em 2006, voltou ao ar. Fotos do Baixinho beijando a bombshell Karina Bacchi invadiram as páginas das revistas de fofoca. Golpe de marketing ou amor verdadeiro? O próprio jura que era verdade, sem dar mais detalhes a respeito. “O namoro com a Karina Bacchi me colocou na crista da onda. Depois ainda vieram a Adriane Galisteu e a Danielle Winits. Foi uma loucura na minha vida”, lembra, com um sorriso no rosto. Sinto uma presença magnética vibrando no ambiente. A energia e a voz de Louis Armstrong provinham da alma do avatar Sebastian. Como uma divindade, ele encantava a todos. Vestia um paletó estilo Jamaica “raggamuffin” e sapatos impecavelmente lustrados. Simpatizei no ato com a figura. De cara, já quis tirar a dúvida: “Sebastian, confundiam muito você com o Jorge Lafond, que interpretava o ícone Vera Verão?”. “Juro que não”, exclamou. “Mas conheci o Lafond, uma pessoa maravilhosa. Ele, no entanto, deixou o personagem ficar maior do que ele. Tento sempre separar uma coisa da outra.” Tal qual o Baixinho, ele não quis revelar quantos anos tem. “Tenho a idade do amor, da adolescência, da grandeza, da vida...”, desconversou. Mas depois deixou escapar: tem 47 anos, sendo 20 deles como garoto-propaganda da C&A. É casado há 23 anos e tem dois filhos. Abuse & Use Observo o Baixinho conversando, ou melhor, palestrando para um grupo de mais de dez pessoas. Suavemente me aproximo e convoco a dupla para seguirmos em frente. Quero saber quais são as referências, os ídolos e mestres da dupla. Sebastian, como um ninja, dá duas piruetas, três parafusos e, com a voz embargada de emoção, posiciona seu panteão: Duke Ellington, Elis Regina, Grande Otelo, Tom Jobim, Toni Tornado, Ella Fitzgerald e Louis Amstrong. Já o Baixinho, com seu jeito de encantador de serpentes e leoas, é mais econômico: o mestre Charles Chaplin. “Arthur, o Baixinho nos comerciais não fala. Sou do cinema mudo”, explica. Sebastian instantaneamente cai no chão gargalhando. Depois de vinho, frios, frutas, café e queijos, mais uma parada para degustar delícias da culinária árabe. Porções de mijadra, homus e babaganuche são pedidas. Estou estufado de tanto comer e beber. Por incrível que pareça, eis que surge a esposa e um dos filhos do Baixinho. Com uma agenda repleta de compromissos, ele elegantemente se despede e ainda atende uma fila de fãs para outra sessão de fotos. Sebastian está de boa e conta orgulhoso sobre o que é, na opinião dele, sua principal contribuição como ser humano: o Núcleo de Artes Cênicas Sebastian, um centro cultural em Osasco aberto há dez anos que oferece aulas de artes diversas para cerca de 300 crianças e adolescentes. “Essa é uma forma de eu agradecer ao Brasil e ao planeta.” Sua formação é na música, no teatro e no sapateado. Foi convidado para fazer um teste para a C&A em 1989. Passou. O resto da história você sabe. Fomos recebidos a pão de ló por todos os vendedores do Mercado. E esta matéria quase não aconteceu tamanho o assédio de fãs da dupla que pediam autógrafos e fotos. Aludindo a outro comercial atemporal, “o tempo passa, o tempo voa, mas a popularidade do Baixinho e do Sebastian continua numa boa”. “O namoro com a Karina Bacchi me colocou na crista da onda. Foi uma loucura na minha vida”, diz o baixinho