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Channel: TRIP // Arthur Veríssimo
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Carbono 14: botas voadoras

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Imagem: Marcelo Yellow

O cabeludinho aí é Arthur Veríssimo, ao lado de Pepe Escobar (mais à dir.)

O cabeludinho aí é Arthur Veríssimo, ao lado de Pepe Escobar (mais à dir.)

A pista de dança bombava com neopunks, darks, carecas do subúrbio, modernosos, bichos-grilos, new romantics, skatistas, rastas, surfistas e drogadictos em geral. Observava o espetáculo dantesco das evoluções e coreografias no alto da cabine de som. A trilha sonora misturava o suprassumo do rock e seus derivados. Naquela época eu vivia no eixo São Paulo-Londres e viajava de três a quatro vezes ao ano, trazendo nas malas e cases as antiguidades e novidades do pós-punk. Meu parceiro nos turntables naquela balada era o master DJ Alois (Eddie The Monster) Lacerda. A noitada era conhecida como Incubus Sucubus, e o nosso acervo era o mais eclético e turbinado na terra do pau-brasil.

"Minha namorada na época lança o outro par da bota, que acerta minha testa e cai em cima do pickup. Confusão generalizada. Gritaria. O disco salta e a música para."

Percebo um bafafá na pista. Um surfista rola pelo chão com um punk da morte. Treta forte. Como num passe de mágica os dois são neutralizados e colocados para fora. Nossa cabine é invadida por duas be ldades estonteantes. Uma delas, com a camiseta do Xmal Deustschland, carrega uma garrafa de Veuve Clicquot, outra com os olhos saltados como um pequinês retira da bolsa uma caixinha de música recheada de cocaína, canudo de prata e espelhinho. Se sentem as donas do pedaço e dos DJs. Na primeira snifada da dondoca, uma bota voa e bate entre o seu rosto e o canudo. Minha namorada na época lança o outro par da bota, que acerta minha testa e cai em cima do pickup. Confusão generalizada. Gritaria. O disco salta e a música para. Um urro tribal coletivo emerge da pista. Alois salta como um Baryshnikov e lança nos toca-discos o clássico “Love will tear us apart”, do Joy Division. A pista delira e o transe transborda.



Imagem: Marcelo Yellow

 

TRIP EMBRIONÁRIA
Para vocês se situarem, essa história aconteceu no segundo semestre de 1984. O local era o Carbono 14, a catedral cultural de todas as tribos alternativas e roqueiras de São Paulo. No prédio de quatro andares acon tecia de tudo. Shows de punk, de metal, reggae, espetáculos de dança, vernissages de artes plásticas, teatro, performances, apresentações de filmes e vídeos inéditos. Foi naquela época que conheci o Paulo Lima e o Califa, pouco tempo antes de criarem a Trip. O sumo-sacerdote do Carbono 14, mestre Castilhão, apresentou-me ao Paulo, que precisava de um sonoplasta para fazer a trilha de uns vídeos de surf. Estava dado o start da nossa parceria. O resultado vocês conhecem ao longo dos 25 anos de história da revista Trip.


Meu primeiro contato com o clã do Carbono 14 ocorreria nas areias escaldantes de Trancoso, na Bahia, no início dos anos 80. Andres Castilho, um dos mentores do Carbono, convidou-me para conhecer e fazer parte da mandala dos carbonários. Minha vida era um mar de rosas. Discípulo de Rajneesh, vivia circulando pelas comunidades alternativas espalhadas pelo Brasil. Naquele tempo já mixava sonoridades nos grupos de terapia onde a luz do di a predominava. O convite era o que faltava para infernizar e me arrastar para a noite. Em São Paulo, conheci o restante da família Castilho (a matriarca, Maria Helena, seu marido, Castilhão, os filhos, Renata e Theo). Deixei de lado as roupas vermelhas de sannyassin, a meditação, o tantra, o incenso e mergulhei sem escafandro no paraíso nebuloso do sexo, drogas e rock’n’roll. Não me arrependo de nada. Nem mesmo da botada na cabeça.


Que Bonito é

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Badu Nogueira

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Jogo de futebol a 5 mil metros de altitude

 

Respirava o ar puríssimo enquanto observava, da estação de esqui de Chacaltaya, a imensidão dos Andes. No horizonte distante, a cratera onde está encravada a cidade de La Paz. A capital da Bolívia está situada a mais de 3.600 m de altitude e Chacaltaya está a uma altura de nada menos que 5.350 m. A estação encontra-se no coração da cordilheira real e é a mais alta do planeta. Suas pistas para esquiar se resumem atualmente a apenas duas linhas finas de neve. Tudo isso devido ao degelo dos picos nevados e às mudanças climáticas. O ar rarefeito já não incomodava mais.

Eu circulava pela Bolívia há mais de duas semanas, investigando a vida dos povos que habitam as bordas do lago Titicaca e as entranhas do caldeirão de La Paz. Estava aclimatado e havia organizado algo inusitado: uma partida de futebol com as cholas, as tradicionais indígenas aimarás que se destacam pelas suas tradições e pelo visual.

 

Badu Nogueira

O reporter posa para a foto oficial da pelaja

O reporter posa para a foto oficial da pelaja

 

O desafio estava lançado. No dia 19 de outubro de 2009, a seleção brasileira comandada por Dunga, depois de 15 meses e 19 partidas invictas, fora derrotada por 2 a 1 para a oxigenada seleção boliviana. Agora era a hora da vingança. A partida seria na cidade de El Alto, que se estende na plataforma que rodeia a imensa cratera de La Paz. Estava marcada para o domingo em uma quadra a 4.050 m de altitude. O cenário misturava os picos nevados dos Andes com as casas de adobe dos habitantes. Aos poucos, as cholitas iam chegando com suas bolsas, fardos e sorrisos marotos. A única condição que a dirigente havia imposto era que este repórter deveria estar trajando as roupas típicas das mulheres andinas. Fazer o quê? Fui agraciado com a tradicional pollera e o chapéu de coco. A tal da pollera é um conjunto de saias, que são colocadas uma por cima da outra. Imaginem a cena. Este cabrón com mais de 1,85 m de altura travestido de cholita aimará. Com o chapéu Borsalino no topo da minha cabeça, era uma mistura de Bat Masterson de saia plissada com um Carlitos desidratado.

"A única condição que a dirigente havia imposto era que este repórter deveria estar trajando as roupas típicas das mulheres andinas"

 

Badu Nogueira

Partida contra os Chola

Partida contra os Chola

 

ARTURO BORSALINO

Começa a partida. Minha esquadra fazia parte de um grupo de indígenas que batem bola todos os fins de semana há mais de oito anos. Todas são pequenas, mas com pulmões de Cesar Cielo. No primeiro pique, senti o peso do meu corpo como se fosse um mamute. As cholas divertiam-se e queriam dar meia-lua, lençol e olé neste incauto esportista. O chapéu-coco não se firmava na calota craniana. Fiquei na minha. Respirava com tranquilidade e, aos poucos, fui tirando o pé do freio. A partida estava 3 a 2 para as adversárias. Depois de 30 min, o Borsalino encaixou na cabeça e percebi que tinha poderes sobrenaturais.

"São pequenas, mas com pulmões de Cesar Cielo. Senti o peso do corpo como se fosse um mamute"

Num dado momento, baixou um Alex, personagem do filme Laranja mecânica, neste precioso corpo humano. Saí em disparada. Acreditem, marquei dois gols. Vibração total. As adversárias me olhavam torto. No segundo tempo, houve até expulsão. Faltando 4 min para o encerramento, fiz um passe para Carmen, a craque do time, que finalizou fazendo um golaço. Final: 7 a 5 para a nossa esquadra.

 

Badu Nogueira

Comemoração

Comemoração

 

Baba, Prem Baba

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Durante uma vida de buscas, soube de muitas histórias de pessoas que se iluminaram. Tive o privilégio de conhecer o guru indiano Osho, do qual fui discípulo durante anos. Quem teve a felicidade de estar com ele conhece bem seus ensinamentos e sua energia. Neste mundo tresloucado e saturado de verdades emprestadas, tornou-se um trabalho de Hércules encontrar uma senda verdadeira. Gurus, mestres espirituais e iluminados surgiram nas últimas décadas como trios elétricos no Carnaval de Salvador. Na última viagem que realizei à Índia, onde fui peregrinar no Khumba Mela em Haridwar, conheci um guru autêntico em Rishikesh e, acredite, ele é brasileiro. Seu nome: Sri Prem Baba.

"Muitos vão ter que se mudar, vão ter que mudar de planeta".

- Desencarnar? "Sim"

Nascido no dia 9 de novembro de 1965 no bairro da Aclimação, em São Paulo, ele foi batizado Janderson Fernandes de Oliveira. Ao longo dos anos, formou-se em psicologia e mergulhou como uma fênix nos estudos da psique humana. Desde cedo foi um jovem ligadíssimo na busca espiritual e pesquisou técnicas orientais e xamânicas. Fundou um centro terapêutico, onde desenvolveu atividades mesclando técnicas de meditação transcendental, terapia junguiana, Reich, artes marciais, Osho, bioenergética e massagem. Um verdadeiro alquimista da nova era vivendo do experimentalismo empírico.

"Você acredita que escolheu o guru, mas você não o escolheu. O guru já o escolheu há muito tempo"

Por anos, ele deu aulas para centenas de pessoas, mas, no fundo do coração, sabia que faltava algo. Aos 32 anos, teve a visão que transformou sua vida. Um velhinho de barbas brancas o chamava para ir a Rishikesh, na Índia. Lá encontrou seu guru, Sri Hans Raj Maharajji. Em 2002, Sri Prem Baba iluminou-se. Quando surge a iluminação, ou a pessoa se torna absolutamente silenciosa, ou explode em canções. A vida de Prem Baba (Pai do Amor) se tornou uma melodia cósmica. Seus ensinamentos espalharam-se por vários cantos do planeta - do Brasil à Índia, passando pelos States e Europa. Por onde passa, milhares de pessoas são magnetizadas por suas palavras. Sim, amigos, Prem Baba tem o talento de guiar pessoas. Ele é um iluminado. Como ele diz: "A chave, o solvente universal que supera as distinções, transcende julgamentos, divergências e dogmas, é o Amor. Você acredita que escolheu o guru, mas você não o escolheu. O guru já o escolheu há muito tempo. Como você sabe se está diante de seu guru? Somente existe uma chance, quando você sente a Graça fluindo". A seguir, o Pai do Amor fala.

Quem é Prem Baba?
Prem Baba é um mestre espiritual que está trabalhando firmemente com o propósito de acordar o amor em toda a humanidade. Estou trabalhando para fazer pontes entre mundos. Entre o Ocidente e o Oriente, entre a ciência e a espiritualidade, entre a floresta amazônica e o Himalaia. Esse é o meu trabalho no mundo inteiro. Mas aqui, Rishikesh, é o epicentro. Aqui está o nosso Sachcha Dham Ashram, onde eu recebo aqueles que vêm à procura de conhecimento, paz e alegria ou em busca de respostas para os enigmas da vida.

Como tudo isso começou?
Quando eu nasci [risos]. Ainda criança comecei a questionar os mistérios da vida. "Mãe, quem foi que fez o mundo?" "Foi Deus." "Mas quem foi que fez Deus?" "Não pensa nisso que você fica louco." E com 7 anos de idade eu entendi que esse seria o motivo da minha existência: encontrar respostas pra esses enigmas. A princípio eu queria encontrar Deus por meio da ciência. Fui à matemática e à física tentar encontrar respostas. Depois busquei as escolas iniciáticas, os mestres espirituais e as religiões horizontais. Tornei-me um terapeuta, um psicólogo, um líder humanitário com muitos seguidores. Porém, ainda mantinha no meu coração a angústia da hipocrisia. Porque sabia que eu era um cego guiando outros cegos. Foi aí que eu mergulhei dentro de mim, à procura de uma resposta e eu tive uma visão.

Quando isso aconteceu?
Com 12 anos, comecei a praticar ioga e ouvi, pela primeira vez, um Bhajan, um mantra cantado para Narayam Sitaram, que é uma manifestação divina, cultuada na Índia. Ouvi dentro de mim: "Quando você fizer 33 anos, vá para a Índia, para Rishikesh". Foi uma tremenda surpresa porque eu não tinha nenhuma ligação com a Índia e não sabia absolutamente do que se tratava.

Onde isso ocorreu?
Em Guarulhos, com a professora Teresinha de Jesus Ribeiro. Ela foi a minha primeira professora de ioga.

Qual foi sua reação?
É evidente que me esqueci disso. Isso ficou nos porões do inconsciente. Fui viver a vida e passar por tudo que um jovem passa. Até que entrei numa profunda crise existencial, buscando coerência entre o que eu falava e o que eu fazia. Foi aí que mergulhei fundo dentro de mim e tive uma visão. Um velho de longas barbas brancas que estava no Himalaia dizendo: "Quando você fizer 33 anos, venha para a Índia, para Rishikesh". Estava em São Paulo e morava em Higienópolis. Tinha 32 anos.

Fez as malas e foi para a Índia?
Nessa época, eu me casei e fui passar a lua de mel na Índia. Conheci muitas cidades, encontrei alguns homens iluminados. Mas nada mudou. Não senti nenhum preenchimento, nenhum sinal. Até que, quando me aproximei de Haridwar, fui inundado por uma luz. Uma luz branca que me envolveu e me trouxe uma mensagem na forma de uma música. E aí eu cantei: "Iluminou e clareou/ Divino Deus/ Com seu resplendor/ Do coração vem o frescor/ Divina mãe/ De caridade mostra a bondade acalmando a dor/ Florindo os cantos com seu amor/ Pedi conforto e entendimento/ Clareou a luz de conhecimento/ Em concentração no Deus verdadeiro". E entrei em êxtase.

Janderson da aula de ioga em 1985

Janderson da aula de ioga em 1985

Onde aconteceu? Num centro de ioga à beira do rio Ganges?
Não, dentro de um Ambassador [carro das antigas na Índia] sem ar-condicionado! [risos] A caminho de Rishikesh. Toda a minha angústia desapareceu. Tive a clareza de que estava no rumo certo. Quando cheguei a Rishikesh, bati na porta do Sachcha Dham Ashram e fui recebido pelo Maharajji. Ele era o mesmo velho de longas barbas brancas da minha visão. Naquele momento, caí aos pés dele. Ele disse: "O que falta pro seu processo é se entregar a um guru vivo". E ali recebi minha iniciação espiritual. Três anos depois, acordei e pude manifestar a presença divina de Sri Prem Baba. Isso foi há oito anos. Desde 2002, venho trabalhando em prol da paz mundial, em ajudar o ser humano a transitar do sofrimento para a alegria.

Nós, seres humanos, vivemos situações muito turbulentas. Existe um método para passar do sofrimento para a alegria?
Sim, existe. Esse método eu recebi no dia da minha iluminação. Nesse dia, eu estava vivendo episódios de samadhi [êxtase] e a experiência da comunhão com o todo, a experiência da unidade.

Com o cosmo, com Deus?
Com Deus, se você quiser chamar assim. Ou com a existência. Ou com a vida. É um momento em que você se sente preenchido, completo. As perguntas desaparecem.

Os obstáculos não existem mais?
Não. Você se sente preenchido pela graça divina. Todas as respostas chegam. É o fim da busca. Mas eu entrava e saía desse estado. Eu entrava e logo caía de novo nesse vale de lágrimas e ranger de dentes que é a nossa vida.

A conexão não ficava?
Não. Até que me lembrei dos ensinamentos do meu guru, que me disse: "Não importa onde você esteja, chame por Deus de verdade, que ele virá". Aí, desci até a beira do Ganges, sentei em uma pedra e meditei. Fiz uma oração. Ali tive um insight. Descobri que ainda estava apegado à guerra nossa de cada dia. Ainda estava comprometido com o círculo vicioso do sadomasoquismo. Existia dentro de mim uma intencionalidade negativa. Nesse momento, ouvi Mãe Ganga falar: "Veja como eu sou livre, a nada me apego". Nesse momento, entrei em êxtase novamente. Quando voltei pro estado ordinário de consciência, percebi que havia dois dentro de mim, um verdadeiro e um falso. Dei uma grande gargalhada e achei o caminho. Subi pro quarto do Maharajji e ele estava rindo. E então falou: "Agora você é um guru e está livre para ensinar como quiser".

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Encontro com sadhu Amar Bhati em Haridwar

É uma grande responsabilidade, não?
É, mas nesse momento veio junto um método. Um método que começa com a identificação dessa intencionalidade negativa. Existe alguém responsável pelas repetições negativas que acontecem na vida e sabotam as chances da felicidade. Quando esse alguém é identificado, é possível a transformação.

O planeta está passando por uma grande transformação, parece que está à deriva. Vemos as mudanças climáticas, o aquecimento global, terremotos, vulcões em erupção. Onde iremos parar?
É uma boa pergunta. De fato, esta é a maior mudança da história deste planeta. Sinto que aqueles que estão sintonizados, podendo receber os novos códigos geométricos de luz que estão sendo instalados, vão ficar muito bem. Mas muitos vão ter que se mudar, vão ter que mudar de planeta.

Desencarnar?
Sim.

Temos que preparar o nosso coração pra essa grande mudança?
O que podemos fazer é aprender a lidar com as consequências da mudança. Mas, mudar mesmo, não dá mais tempo.

Prem Baba, tá um baita calor aqui.
Vamos dar uma volta. Vamos respirar o ar lá fora, dar um mergulho no Gonga [o rio Ganges]. Olhe o pôr do sol. Você respira paz.

Por que as pessoas dão três mergulhos nos locais sagrados?
É uma ciência da numerologia. O três representa a perfeição, equilibra o dois. Largura, altura, profundidade. Positivo, negativo e neutro.

* * *

Agradecimento especial:
Arthur viajou com a operadora Latitudes "viagens de conhecimento"
www.latitudes.com.br
- Tel. (11) 3045-7740

Gonzo sagrado

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Arthur Veríssimo

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Arthur levou seu livro para circular entre os indianos que o inspiram

Em seu livro Karma Pop, que chega este mês às livrarias, dá pra entender melhor a simbiose entre Arthur Veríssimo e a Índia. Nosso editor Paulo Lima traduziu essa relação em palavras

Aqui onde estou, existe um point break clássico, uma situação geográfica muito perfeita para o surf. Por conta disso, todos os dias, há dezenas de cabeças na água e outras tantas olhando do alto do cliff, o barranco colado ao pico. Acabo de voltar de lá. Parei a bicicleta e, sem desmontar, fiquei olhando o movimento. Como sempre, havia alguns destaques, figuras que conhecem melhor o lugar, que têm mais habilidade natural ou que treinam mais. Mas entre as mais de 40 almas que contei na água uma parecia estar em outro ritmo. Enquanto todos tentavam se posicionar sem deixar que a corrente os arrastasse, para conseguir entrar nas ondas na velocidade certa ou para desenvolver seus repertórios de manobras, o tal sujeito parecia movido a outro tipo de energia. Praticamente não remava, se movia com leveza maior, parecia entender melhor o ritmo do oceano, mais que isso, fazia parte dele, ia a favor, nunca contra o balanço da água, era parte dela. Não havia ninguém, dentro ou fora do mar, que não percebesse que aquele indivíduo pertencia de fato ao lugar.

Apreciando esse pequeno show, ficou fácil escrever algo sobre Arthur Veríssimo na Índia.

Muitos repórteres estiveram lá. Agora mais do que nunca. É quase uma moda mandar correspondentes a festivais e encontros religiosos daquela parte do mundo. Mas desde a primeira vez em que nosso gonzo de estimação carimbou seu passaporte rumo ao precário e calorento aeroporto de Délhi, no quase remoto ano de 1994, não restou dúvida de que aquele era seu lugar. Não importa o nível de dificuldade. Nem o grau do calor insuportável, o calibre das roubadas, o naipe das diarreias, as tosses, as carraspanas dos guardas com seus sarrafos de madeira, as pimentas cabulosas, os hotéis esquisitos... tudo isso, que já fez muita gente boa e experimentada voltar para casa na primeira chance, é música para nosso querido repórter excepcional.

Arthur se transforma em parte da umidade, seus poros se abrem, uma febre de 40 graus vira mantra para meditações, pimenta de qualquer bitola é refresco, dá um jeito de cinturar para se esquivar da cacetada do guardinha, fica amigo do "Sadhu fumo de corda", aquele que enrola o próprio pinto num cabo de vassoura, e brother do que está com o braço esquerdo levantado há décadas. Olhando as fotos dos seus reencontros com essas duas figuras, pode-se ver claramente: o Sadhu Rexona (como o apelidamos desde o primeiro momento) exulta em rever o camarada brasileiro. A alegria é tão natural, que talvez fosse suficiente para que, por um segundo, se esquecesse de sua promessa permanente e baixasse o graveto em que se transformou seu braço esquerdo para abraçar o tatuado e esfuziante mano Veríssimo.

Não há travesti sagrado, divindade mirim, bovino endeusado, chofer de praça, piloto de elefante, filhote de Hanuman ou qualquer outra figura do infinito panteão alucinado da Índia que resista a esse magneto de gente diferente, maluca, esquisita, genial, heterodoxa, exótica, mágica ou xarope. Ímã de figuras que não aceitam encaixes nem padrões.

Se a Índia fosse um point break, Arthur seria um irresistível cruzamento de Kelly Slater, Picuruta Salazar e Didi Mocó. Um príncipe Namor dos trópicos. Dançaria sobre as águas salgadas como numa animação da Pixar, daria piruetas sobre o mais afiado reef, se transformaria no mais animado e gauche dos golfinhos amestrados dissidentes, um fugitivo do Sea World se esbaldando mar afora.

Relendo as aventuras/reportagens/fuçantinas que publicamos aqui sobre as 17 vezes em que nosso camarada esteve nos domínios de Gandhi, no seu recém-lançado DVD e agora em seu livro, você poderá comprovar: ali, na terra do Ganesh, Arthur é uma vaca sagrada.

Vai lá: Karma pop, 138 págs. Editora Master Books. Preço recomendado: R$ 120.

Pausa forçada

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Calado, escuto as dicas e explicações do artista de rua, enquanto uma tinta azul espessa é espalhada sobre o meu rosto. Leandro Calado é “mímico performático profissional” e atua como estátua viva há mais de 14 anos no Brasil, nos EUA e na Europa. Recebo uma infinidade de orientações sobre postura, maquiagem e como interagir com o público fazendo gestos e olhares. Uma nuvem de pó invade minhas fossas nasais. Para aderir a tinta na face e no corpo, Calado salpica pela epiderme do meu precioso corpo humano um saco com talco. Sou coberto por uma tinta de coloração azul-escura, da marca Catharine Hill. Depois por traços de um azul mais claro e pontos brancos.

Esse make up arrastou-se por duas horas. Objetivo: transformar este repórter no personagem principal de Avatar, o militar que se torna defensor dos bichos-grilos Na’vi no filme de James Cameron, fazendo assim uma reflexão sobre a intromissão destrutiva do homem sobre a natureza. E lá estava este arauto da liberdade e da notícia pronto para expor sua pele azulada no marco zero da cidade de São Paulo. Sim leitores, na Praça da Sé.

Caminho pela praça em direção à majestosa catedral com sua arquitetura gótica e bizantina. Estou semicamuflado com um quimono, mas os adereços e a tinta azul chamam a atenção. Mico, roubada ou um eco moderno da mensagem de multiculturalismo? Para compor o Avatar da Sé, me utilizei de adornos pessoais como guias de candomblé e colares rudraksa, marca registrada do deus Shiva. A peruca mezzo rasta mezzo sadhu, por sua vez, não era de meu acervo. Completou meu visual um rabo azul comprido. Sinto o cheiro amargo da marvada pinga e observo um grupo de mendigos e maltrapilhos querendo se aproximar. A fragrância tóxica domina as beiradas.

A praça da Sé é um ponto de passagem diário para mais de 1,5 milhão de pessoas. Criaturas e seres humanos brotam de todos os lados e são engolidos pelo frenesi da massa humana em suas tarefas diárias. Nesse formigueiro incessante, a sujeira e o mau cheiro parecem não incomodar ninguém. Soldado da notícia e Avatar de expiação, sou guiado pelo mestre Calado para uma posição estratégica. O cenário é cinematográfico: ao fundo a catedral e, no meu raio de visão, a estátua de São Paulo e o vai e vem dos transeuntes.

KID VIAGRA

Subo no banquinho clássico das estátuas vivas e, num passe de mágica, incorporo o personagem. Sou castigado e batizado por nomes bizarros. “Quem é ele? É um índio, não é?”, pergunta um senhor de boné e camiseta do Corinthians. Outro me reconhece como “o cara que apresenta o [programa de TV] Manhã Maior”. “Mas esqueci o nome”, completa. No zum-zum-zum, outro sujeito grita: “Olha o Azulão, é o Kid Viagra”. Saio da minha concentração e caio na gargalhada junto com a turba.

Sigo as premissas das estátuas vivas: muita disposição, preparo físico e humildade. Estava entregue à situação, de braços abertos para a novidade. Sou invadido por uma imensidão de pensamentos nebulosos. A multidão quer participar. Uns pegam minhas tranças de Avatar “para fazer a conexão”. Outros mexem no meu rabo azul. Entre homens com placas de “Compra-se ouro” e churrasquinhos gregos, escuto vozes por todos os lados.

Uns pegam minhas tranças de Avatar “para fazer a conexão”. Outros mexem no meu rabo azul

Minha situação é bem diferente da do conflito em Pandora, terra dos Na’vi, em Avatar. No filme, os humanos querem por todos os meios sugar o precioso minério Unobtainium. É a clássica relação que se perpetua na história da humanidade: colonizador barbarizando colonizado. Na Sé, não existe alinhamento galáctico ou estudo antropológico a ser dissecado. Estamos ali para nos divertir. E, no fim, o que realmente ficou impregnado desta experiência foi a tinta azul que demorou dias para sair do meu corpo.

CINCO PASSOS PARA VIRAR ESTÁTUA

Leandro Calado, 28, anos atua como estátua viva há 14 anos no Brasil, na Europa e nos EUA. Uma das performances de maior sucesso foi em frente ao Metropolitan Museum, em Nova York. Nela, ele buscava conquistar sua mulher, Beatriz, também uma estátua viva. A cada moedinha, uma nova cena era executada. A seguir, as dicas de Leandro:

1. Faça cursos de mímica, teatro e dança para aprender as técnicas.
2.
Busque referências e observe outros profissionais. No Brasil, dois nomes conhecidos são Potenza e Azerutan.
3.
Escolha um personagem com o qual você se identifique. Pesquise história, hábitos, roupas e objetos que ele usa.
4.
Há tintas que causam alergia. Ele indica a marca Catharine Hill.
5.
Escolha um lugar bem movimentado. Em São Paulo, boas opções são a avenida Paulista e o parque do Ibirapuera.

Vai lá: www.mimicalado.com.br e www.estatuaviva.com.br


A arte do palhaço

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Pessoas sérias e carrancudas deveriam frequentar espetáculos em que a comédia, o improviso e o humor manifestam-se. Basta acionar nossa memória atávica e resgatar lembranças: o Capitão Gay interpretado pelo Jô Soares, o Pantaleão e o Coalhada pelo mestre Chico Anysio, as impagáveis manobras do Bussunda, os delírios do Ronald Golias, as sacadas do Costinha, as ressacas da Catifunda, as brilhantes histórias do Monty Python, as confusões psicodélicas dos Três Patetas, de Oscarito, de Jim Carrey e tudo aquilo que Chaplin, o Gordo e o Magro e Buster Keaton realizaram.

Sou do tempo do Epaminondas e adepto da gargalhada. Outro dia, num domingão sapeando a TV, fui hipnotizado pelo programa Pânico na TV por um personagem surpreendente: o Ursinho Gente Fina, que seduziu o Brasil. Fui incumbido pela Trip de decifrar Eduardo Sterblitch, “aka” César Polvilho, Freddie Mercury Prateado, Serginho ex-BBB e, ufa, o Ursinho Gente Fina. Nosso encontro aconteceu primeiro em sua casa em Moema, São Paulo, e depois na Rede TV. Carioca, 23 anos, nosso Freddie Mercury Prateado possui um currículo turbinadíssimo: nove anos de aulas particulares de clown, oito anos de curso livre no Teatro Tablado e atividades multifacetadas em peças de teatro infantil e musicais femininos. Desde pequenino ele dublava Daniela Mercury e Mara Maravilha no prédio onde morava. Sempre interpretou personagens femininos. “Gostava de imitar mulheres, até com a minha bisavó de bengalinha eu tirava onda”, conta.

Nossa conversa foi embalada por momentos de muita gargalhada e histórias psicodélicas. Edu jura que parte da sua família veio da Rússia, mais precisamente de Chernobyl, onde ocorreu o maior acidente nuclear da história em 1986. Segundo ele, aquelas terras inclusive pertenceram à sua família. Por causa disso, ganhou o apelido de Chernobyl no colégio onde estudou no Rio. Leitor compulsivo de Beckett, Ionesco, James Joyce e outros clássicos da literatura, Edu mergulhou no humor e hoje faz parte do elenco do Pânico. Basta escutar os mantras e bordões que criou para seus inúmeros personagens: “Emiiiliooo, estou grávido”, “Meus braços doooem”, “Papai fugiu”, “Venha, baiano”, “ALOKA” e “Uh! Lady Gaga”.

Sterblitch está em cartaz toda segunda-feira no teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, com a peça Minhas sinceras desculpas. “Queria terminar nosso papo implorando para todos assistirem”. Recado dado.

Você escutava Queen?
Não, minha mãe ouvia no carro. Mas nunca procurei saber do Freddie Mercury, nem para compor o personagem. Foi meio por acaso. Quem deu o nome foi o Bola, do Pânico. Eu coloquei o bigode, ele riu e disse: “Olha o Freddie Mercury prateado”.

Esperava tanto sucesso?
Não espero nada da minha vida, nunca.

Você se considera um mau ator?
Me considero. Me considero não: sou um péssimo ator! É fato. Péssimo comediante e humorista.

Quais são as suas referências?
São meus mestres Beckett, Ionesco, Joyce, Duchamp... A dramaturgia pós-guerra é a minha preferida. Isso me ferra completamente, eu preferia ler outras coisas. Sou uma mistura de tudo que vi, não sou nem um pouco original.

Você é uma pessoa triste?
Muito triste. E sou feliz por ser triste, a tristeza me dá a concentração.

Mas você fica em estado depressivo?
Muito. Durmo muito pouco.

Uma metamorfose ambulante?
Eu mudo de um dia pro outro. Dou entrevista e depois me arrependo do que eu disse. Mas o ser humano que não muda de opinião é burro. Mudo de opinião toda hora.

Seus personagens têm a ver com essa metamorfose?
Talvez. Na televisão é tudo muito descartável, é cruel. Quando você manda bem num domingo, vai embora e acabou. Vai ter que se virar e fazer outra coisa na semana seguinte. É como fazer a barba. Vai ter que fazer de novo.

Você acompanhou a Sabrina numa experiência no Santo Daime com ayahuasca?
Sabia que você ia perguntar isso... Você tem cara do Santo Daime! Foi a Sabrina que tomou a iniciativa. Eu nem sabia o que era. Cheguei lá com muito medo. Fiquei muito mal, ficou tudo escuro.

Você seguiu os preceitos? Fazer abstinência sexual, não comer carne durante três dias...
Segui. Não fui lá fazer uma piada, mas achei muito ruim. Tudo que me tira a sobriedade me deixa muito mal.

Você tá mais pra careta ou psicodélico?
Meu adjetivo maior é careta. Eu não gosto de viajar muito, eu já viajo muito.

Qual dos seus personagens te agrada mais?
Nenhum. Não acho nenhum personagem meu do caramba.

“Eu beijo homem na boca. Ali eu sou gay.
Eu e o Carioca”

Mas, no caso do Serginho, você superou o personagem original.
É porque eu não sou o cara. Eu peguei um tipo. Foi do acaso.

Tem preconceito com o seu personagem?
Não, nenhum. Eu beijo homem na boca. Ali eu sou gay. Eu e o Carioca.

Mas, às vezes, o Carioca fala: “Nossa, tô ficando de pau duro aqui”...
É uma forma de ele fazer graça, dar uma quebradinha. Pra você também se autoafirmar um pouco, senão você acaba virando veado.

Você aprende muito com o Carioca? Ele é um mestre?
Muito. Com o Carioca, o Bola, o Emílio. Com todo mundo do Pânico.

Dentro da estrutura do Pânico, o Emílio é o maestro?
O Emílio é um conselheiro, mas acima de tudo um grande manipulador. É o amigo e o inimigo, está sempre um passo à frente. Quando ele percebe que o seu personagem está funcionando, logo fala que não vai durar muito.

Da onde veio o Ursinho?
O Emílio viu um vídeo de um programa de televisão inglês que tinha um ursinho, e me mostrou. Um domingo eu cheguei e a poltroninha estava pronta. A primeira vez que eu fiz a voz foi ao vivo, nem o Emílio tinha ouvido ainda.

E quais são os mantras do Ursinho Gente Fina?
O importante no humor é você estar um passo à frente do seu público. Ser previsível demais ou muito imprevisível. Eu desenvolvo o Ursinho ali. Só falo frases e expressões pequenas, porque não tem mais o que ser dito. E falo “Comam Danone”, ou “Hoje eu comprei um pote”. Um pote de quê? “Não sei, um pote.” Coisas que as pessoas não estão acostumadas a ouvir. Não tem uma linha de raciocínio lógico. É sem lógica, sem querer fazer uma piada. Você opta pelo mais simples...

Você já levou patada?
A gente tinha uma brincadeira ridícula de pedir autógrafo para as celebridades com uma caneta que dava choque. Um dia uma atriz tomou o choque e ficou muito chateada. E eu não soube o que fazer. Fiquei no cantinho, olhando tristinho. E foi pro ar assim. Três matérias depois encontramos ela de novo. Eu peguei uma violeta que tinha num canteiro perto e dei pra ela, pedindo perdão. E a gente fez as pazes. E foi tudo pro ar. É importante cair. Eu acho que o público não gosta de quem é fodão.

“Eu juro por Deus. A terra onde é Chernobyl era da minha família”

CQC é fodão?
CQC
é fodão. Todo mundo ali é fodão. E o mais engraçado do CQC é quando algum deles se fode. O público quer ver você se ferrar. Chaplin é isso. Keaton é isso.

Mudando de assunto, quais são suas origens?
A minha bisavó era russa e judia. Ela tem uma história... O pai dela era dono de Chernobyl Eu vou fazer um filme lá sobre a minha bisavó. E vou ganhar um Oscar.

O Pânico sabe disso?
Não. Uma vez eu contei na minha aula de história, e a professora riu de mim, falou que eu era mentiroso. Fiquei com fama de Chernobyl no colégio.

Tô acreditando agora.
O governo russo não aceitava que um burguês tivesse mais dinheiro que o Estado. E a terra dele valia muito dinheiro. Então prenderam ele e tomaram suas terras. Minha bisavó me contava isso. Ela tinha 18 anos, fez um fundo falso num trem e viajou embaixo dele, na Segunda Guerra Mundial, da Rússia até longe pra caralho. E foi a pé da Suécia até a França. Ela foi ainda a primeira mulher que vendeu cinta-liga no Brasil.

Ouça +: César Polvilho revela ao Trip FM seu lado intelectual

 

Deus é grande

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Arthur Veríssimo

Em sua busca insaciável por novidades sexuais, nosso repórter excepcional viaja aos templos eróticos de Khajuraho, na Índia, aprende a posição de rachar o bambu, surpreende-se com seu falo ereto enquanto apalpa estátuas e se junta às oferendas a monges pelados

Meus pensamentos e minha imaginação borbulhavam incandescidos no microscópico aeroporto de Khajuraho, na parte central da Índia. O calor massacrante e a fúria do deus Surya, o Sol, castigava o corpo e a ordem das minhas sinapses. O termômetro no veículo de nosso guia Nishank indicava 46oC no início da manhã.

Khajuraho é um pequeno vilarejo seco, poeirento, castigado pela falta de água e com pouquíssima vegetação. Nesse cenário devastado pelo calor, encontra-se o suprassumo dos devotos do tantra, do erotismo e da sensualidade: um conjunto de templos de mais de mil anos onde as pedras e as esculturas gozam de prazer e felicidade. Durante séculos essas maravilhas ficaram escondidas da fúria dos invasores muçulmanos pela vegetação espessa da floresta. Mas foram redescobertas em 1838 pelos colonizadores ingleses.

Hoje a floresta não existe mais. Tudo foi devastado, com exceção de algumas árvores. Dos 85 templos originais, construídos de 95 d.C. a 1050 d.C., foram preservados 22 – que, no meu entender, são o clímax da arquitetura religiosa indiana. O divino entrelaçado com o profano.

Zigue-zague

Na entrada do complexo, somos abordados por dezenas de guias. Todos são especialistas em Khajuraho e se expressam em muitos idiomas. Um senhor educadamente aproxima-se e começa a falar um português com sotaque mineiro. Sua aparência é enigmática, seus cabelos estão pintados com uma coloração de hena muito parecida com a cor cenoura mística que o mestre Silvio Santos incorpora – também conhecida por acaju. Gosto do seu estilo.

Mister Sangeet não se faz de rogado e se oferece para nos conduzir pelas alamedas que circundam os templos. Na caminhada, ele nos explica que cada templo foi erguido numa elevada e sólida plataforma de pedras e que pertencem a três seitas distintas (vaishnava, shaiva e jainista). Conectados, somos abduzidos pelo templo mais suntuoso do complexo: o Kandarya Mahadeva, dedicado a Shiva. Perco a noção de tempo e mergulho em um portal de outra esfera.

O templo tem um formato semelhante a uma cruz e está adornado com mais de 650 estátuas. As paredes externas são incríveis. Um desfile alucinante de bailarinas e ninfas celestiais (apsaras, surasundaris, alasakanyas) e uma abundância de cenas eróticas explodem por todas as paredes. As imagens desafiam qualquer julgamento preconcebido. A união entre o erotismo e a religião abundam por todo o complexo. Observo que as estátuas são sexualmente ativas, mas não estão obcecadas pelo sexo: nem contra, nem a favor. Tudo ali é desavergonhadamente terreno e infinitamente de outro mundo. Orgia voluptuosa.

A turistada invade o complexo. Fico imerso acompanhando os olhares e demonstrações de surpresa, alumbramento, desaprovação, vergonha, rejeição e muita risada. Um grupo de jovens indianos diverte-se com uma murada imensa onde as esculturas explodem em explícitas cenas de amor carnal. Pergunto de onde são. Todos estudam e moram na cidade de Bhophal.

O mais saidinho chega se apresentando. “Meu nome é Sundra e sou um especialista no Kama Sutra.” Gargalhada geral. Sem baixar a guarda, aponto para uma cena de coito em que homem e mulher estão entrelaçados e pergunto a ele qual é o nome da postura. Com cara de safado, ele exclama: “A postura chama-se zigue-zague, zigue-zague”. Depois das risadas, nosso guia Sangeet chama a atenção da rapaziada e, com muita propriedade, explica: “Essa posição encontra-se no manual Ananga Ranga e tem o nome de ‘rachar o bambu’. A mulher deita-se de costas, coloca uma das pernas sobre o ombro do amante e estica a outra, e assim alternadamente. ‘Rachar o bambu’ requer grande concentração para ser perfeita”.

Marcelo Guedes

Momento de sintonia cósmica em que o escriba foi abduzido pelas ninfas celestiais

Momento de sintonia cósmica em que o escriba foi abduzido pelas ninfas celestiais

O guru indiano Osho definiu esplendidamente o significado dessas imagens. “Nas paredes externas há esculturas com todos os tipos de posturas sexuais. Quando você começa a entrar nos templos percebe que o sexo se dilui. Casais ainda estão presentes, em profundo amor, olhando nos olhos um do outro, se abraçando, mas a sexualidade não está mais presente. Entre ainda mais no templo, e os casais desaparecem. O templo está completamente escuro, em silêncio, calmo e quieto. Não existe sequer a figura de um deus. A parte externa é um carnaval. O recanto mais íntimo é nada, é a meditação, é samadhi. Isso é o retrato de toda a vida do ser humano. Mas lembre-se: se você destruir as paredes externas, destruirá também o santuário interior. O centro não pode existir sem a circunferência. Eles estão juntos!” Nossa vida externa é recheada de sexualidade. Boicotar e rejeitar é para os pasteurizados e ignorantes. O tantra não rejeita nada e transforma tudo.

No templo de Lakshamana, as minuciosas esculturas parecem ter vida própria. Os frisos e as laterais possuem aspectos tridimensionais. As cenas de zoofilia e outras bizarrices deixariam o marquês de Sade espumando de felicidade. O xamanismo reverbera em cenas de rituais sexuais de fertilidade. A energia feminina, Shakti, está presente na essência e nas inúmeras faces das esculturas do complexo: tocando instrumentos, gozando, dançando alegremente ou simplesmente pintando os olhos ou penteando o cabelo.

Passo a mão sobre uma sinuosa estátua e repentinamente sinto uma baita energia rasgando minhas entranhas. Efeito Kundalini. Fico de fallus erectus diante das ninfas e da força magnética do templo. Sim, de pau duro. Êxtase em Khajuraho. Respiro profundamente e equalizo a energia em meu corpo.

 

Comida para o homem nu

Ao lado do templo de Devi Jagadamba vejo um casal de turistas ocidentais soltinho na marola e dando um amasso fortíssimo, quase indo às vias de fato. Na saída do templo sou surpreendido pelo mesmo casal, que, radiante, pede para que eu tire uma foto. São portugueses e vieram para Khajuraho passar sua lua de mel. Pergunto a eles sobre a energia e a beleza do local. Marília, a noiva sem pudores, destila que nunca na vida havia feito tanto amor com seu adorável Manuel. “Ora pá, isso aqui é orgiástico. Estou correndo para o quarto com o meu Casanova de Lisboa.” Na mesma vibe, Manuel exclama: “Vamos simbora, Marília, que quero engatar a posição da tartaruga”.

“Ora pá, isso é orgiástico. Vou correr pro quarto com meu Casanova de Lisboa”; “Vamos, quero engatar a posição da tartaruga”

Mister Sangeet me aguardava. Cheio de salamaleques, me passou uma sacola dizendo que o conteúdo iria me agradar. No hotel, após o banho e uma lauta refeição, fui ver o que tinha na sacola do gato Félix. O primeiro volume era um ilustrado livro taoista, Manual sexual da moça escura, com dezenas de gravuras e pinturas de posições sexuais. Depois puxo da cartola o misterioso Chandamaharosana tantra, um megatratado do século 9 em que são descritas 13 posições sexuais. Outro tratado taoista que ele me presenteou traz dicas como “Nove estilos de movimentar o Tale de Jade quando introduzido no Sulco Dourado”. Biscoito fino.

Arthur Veríssimo

Cenas de erotismo carnal nas sublimes esculturas do templo Kandarya Mahadeva

Na manhã seguinte, lá está mister Sangeet com seu sorriso brejeiro. Nosso destino é o setor dos templos jainistas, na parte sul de Khajuraho. O colosso mais importante é o de Parsvanatha. Não há nenhum tipo de manifestação erótica ou escatológica nos monumentos, devido à natureza ascética da doutrina jainista. Mas logo ali do lado enxergo um homem completamente nu. O único objeto que carrega parece muito com um espanador. Nossa guia Nishant esclarece que aquela vassourinha é para literalmente varrer os insetos pelo caminho. Um belíssimo grupo de mulheres vestindo sáris coloridos aproxima-se com cestas de comida para entregar ao homem nu. No local existem três monges que abdicaram de tudo. Diariamente é realizado um ritual em que as famílias jainistas fazem suas orações e oferendas. Existe uma cumplicidade secular entre as pessoas.

Uma das imagens que me deixaram mais intrigado no emaranhado divino de Khajuraho é uma série de esculturas de monges ao lado de ninfas tentadoras. Na mitologia hindu, abundam histórias de mulheres e divindades desafiando a castidade dos homens santos e ascetas. Para chacoalhar a arrogância, o magnetismo, a castidade e o poder desses monges, os deuses de tempos em tempos lhes enviam maravilhosas surasundaris e apsaras. E, na maioria das vezes, os santos sucumbem diante da sedução. As escrituras não mentem.

* * *

Agradecimentos especiais: Arthur viajou com a operadora Latitudes “viagens de conhecimento” www.latitudes.com.br – Tel.: (11) 3045-7740

 

É tudo Veríssimo

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Numa tarde frugal, farejando os recônditos do Facebook, localizei uma pagina sui generis. “Veríssimos no Mundo.” Pasmo, indaguei-me: estaria ali mais galhos e ramos de minha árvore genealógica? Teclei um mensagem para a coordenadora da página. De bate-pronto recebo uma resposta de Graciete Veríssimo Grandíssimo, agradecendo o contato e dizendo a respeito de um almoço que iria ocorrer em Portugal. A grande família Veríssimo faria, dentro de semanas, um épico encontro anual. Dias depois, estava eu na cidade das oito colinas, Lisboa.

Já no primeiro dia, ora pois, minha priminha Graciete apareceu para dar as boas-vindas e contar sobre a saga dos Verissimos: África, destinos,guerras, matriarcas, elefantes, patriarcas, fado... Meus genes palpitavam de orgulho. No dia seguinte, o esperado encontro. Graciete em estado de graça me apresenta a toda a egrégora dos Verissimos.

Sou “a bola da vez”, todos querem ter uma prosa e tirar uma casquinha com o priminho da Terra do Pau-Brasil. Escuto um badalo tocando, Graciete pede para todos sentarem-se em suas respectivas cadeiras e mesas. Sendo o primo além-mar tive o privilégio de dividir a mesa do banquete com a nata dos Veríssimos. Um senhora elegante e com muita classe senta-se a nossa távola. Chama-se Vanda Veríssimo, durante muitos anos foi a primeira-dama em diversas regiões em Angola nas terras conquistadas. Contou histórias das terríveis matanças de elefantes, hipopótamos, leões e outros animais selvagens que os administradores portugueses realizavam em Angola. Enquanto conversávamos o almoço era servido e o embalo da festança ia aquecendo.

Em dado momento um senhor começou a tocar violão. O repertório navegava pelas canções do Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, o fado português e o samba de Martinho da Vila. Somos todos arrastados para fazer o trenzinho pelo salão. Chamo o artista de lado e começo a cantar em altos brados a clássica música de Roberto Leal. O salão incendeia:

“O Bate o pé, bate o pé, bate o pé. O bate o pé faz assim como eu...” O frenesi é contagiante. Vejo minhas parceirinhas Faffy e Hermínia rindo aos borbotões. Eles ensaiam um verdadeiro pancadão lusitano e repentinamente um ritmo alucinado invade a festa. Estou falando na dança do KUDURO. O delírio é pleno. Observo todo mundo com o quadril duro jogando as cadeiras. O lance é soltar as ancas e sair feito o diabo- da-tasmânia na rebolantina. O encontro foi uma dádiva onde escutei histórias majestosas e intermináveis da saga da família Veríssimo. E todos terminaram o bailado dançando o KUDURO.

 

Agora deu!

Ele já entrou nos recônditos metafísicos de Madagáscar. Já enfrentou quatro Kumbamelas e deu selinho no Serguei. E por isso somos gratos. Mas nos vender uma jornada ancestral e entregar um convescote de uma família homônima foi demais para nossa paciente Redação. Arthur foi para Portugal e perdeu o lugar!

Mas, como a Trip não pode viver sem um Arthur Veríssimo, pedimos a sua ajuda.

Jovem: se você se chama Arthur e seu sobrenome é Veríssimo, mande uma foto usando óculos para mechamoarthurverissimo@trip.com.br

Conheça o mundo, estamos contratando


A evolução do emosapiens

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Nosso repórter fluorescente encarna o quinto elemento do Restart para uma conversa franca sobre música, preconceito, homossexualidade e paudurescência com os garotos da banda mais amada e odiada do Brasil

Rui Mendes

Koba, Pe Lanza, Ar Thur, Pe Lu, Thomas

Koba, Pe Lanza, Ar Thur, Pe Lu, Thomas

“Por que o Lobão implica tanto com a gente se ele já foi da Blitz, que usava roupas coloridas como as nossas?”, manda Pe Lanza, 18, quando pergunto se ele já leu a biografia do roqueiro cinquentão. “O que o Lobão detona é que vocês, juntamente com Fiuk e Luan Santana, não possuem paudurescência nenhuma”, retruco. Pe Lanza, Pe Lu, Koba e Thomas ficam alvoroçados e falam um por cima do outro. Como na maioria das perguntas, Pe Lanza assume a função de porta-voz: “Cara, nós estamos de pau duro para falar de rock, cair na estrada e fazer a galera se divertir. Esse é o motivo de estarmos aqui, fazemos o que gostamos, tá ligado?”. Se vira então para a câmera do nosso site, que acompanha o encontro, e emenda: “Lobão, eu sou o lobo mau, fica esperto. O lance é o seguinte: conforme você vai ficando mais bem-sucedido, as cobranças são maiores. Somos disciplinados, correspondemos à vibração da galera nos shows... por que certos ritmos brasileiros são tão ‘ruins’ e mesmo assim têm esse megassucesso?”.

Na análise fria dos números, a rapaziada colorida tem razão. Seus clipes somam mais de 46 milhões de views na internet e cada um tem mais de 500 mil seguidores no Twitter. O primeiro CD bateu as 110 mil cópias vendidas, fazem mais de dez shows por mês e agora no fim de abril sai um livro sobre a saga da banda, juntamente com o segundo DVD (o primeiro, de karaoke, vendeu mais de 20 mil cópias). O quarteto acumula ainda 25 contratos de licenciamento, ganhou todos os principais prêmios do último VMB (decidido por votação popular), está gravando em espanhol e prepara um longa-metragem em 3-D produzido por Vera Egyto e dirigido por Heitor Dhalia. Mas não interessa. Desde que os garotos estouraram, cardeais e menestréis do rock tupiniquim (Lobão à frente) têm descido a vara no Restart.

“A sociedade tá muito escrachada. Tem garota perdendo a virgindade aos 13. Nossa rebeldia é contra a violência, a maldade, a promiscuidade. Somos ligados à nossa família e contra qualquer preconceito. Se alguém quer usar tênis colorido e calça oncinha, o problema é dele”

A causa? Dor de cotovelo, preconceito, intolerância? Ou seriam eles apenas filhotes tardios de bandas como Blitz, Kid Abelha, Metro, Tokyo e Biquíni Cavadão? Sim, porque os tempos são outros, mas os cabelos, a indumentária, as letras e a postura de palco continuam muito parecidos. Foi por esse caminho que enveredou minha conversa com a trupe do Restart, em um sabadão grudento no camarim do espaço Lux, nos cafundós de São Bernardo do Campo.

Rui Mendes

Arthur e Pe Lu riem de Koba

Arthur e Pe Lu riem de Koba

Os carinhas estão chegando só agora aos 20 anos, e a exposição brutal acabou revelando opiniões estapafúrdias sobre placas tectônicas, Bin Laden e Amazônia. O baterista Thomas, em entrevista recente, disse querer muito tocar no Amazonas. “Imagina tocar no meio do mato, não sei nem se tem gente lá, civilização.” Os demais integrantes a seu lado nada disseram – vale lembrar que Manaus, a sétima maior cidade brasileira, tem quase 2 milhões de habitantes. Por outro lado, há muito marmanjo de 30, 40 ou 50 anos que não consegue articular três frases e faz parte da matilha que escolheu Pe Lanza e seus camaradas para a guilhotina. Não estou aqui para defender o Restart. Lobão é a única personalidade que fala, espreme, xinga e dá a cara para bater neste cenário de bom-mocismo e bunda-molismo que vigora no entretenimento nacional. Ele pode falar o que bem entender, pois sobreviveu ao tsunami de uma geração vida loka, fez e aconteceu. Lobão se garante.

“SOMOS HÉTEROS”
No tempo escasso que conquistamos no camarim da banda, com o tumulto, a gritaria e a histeria de fãs adolescentes ao fundo, o papo foi adiante. Meu visual é motivo de gargalhadas da equipe. Já fui de tudo nesta vida, cromagnon, hippie, rajneesh, beatnik, neandertal, protopunk e agora um tardio emosapiens. Pe Lu (guitarra) se anima com a primeira pergunta: Quais são as referências musicais de vocês? “Cara, sou ligadíssimo na postura do John Mayer e a minha vida toda escutei Steve Ray Vaughan, Jimi Hendrix e bebi os conhecimentos na fonte do blues. Estudei guitarra por quatro anos e continuo na pesquisa.” Pe Lanza (baixo e vocal) chega junto com seu cabelo mezzo emo/mezzo Snoop Dogg Dogg: “Peguei a rebarba do meu pai, que era conectado no Aerosmith e em bandas de hard rock. Nem tinha nascido quando eles apareceram, mas gosto muito do Sex Pistols. E Guns’n’Roses é a banda da minha vida”. Koba (guitarra) define o Pink Floyd como “seminal” e afirma que sua fonte de inspiração foi o avassalador John Bonham (o Bonzo do Led Zeppelin). Já o coruscante Thomas curte Bob Marley, Skank e Guns’n’Roses.

Não há como passar incólume pelo carisma dos garotos. A conversatina aprofunda-se para o que a rapaziada anda lendo. Novamente Pe Lu sai na frente e comenta que leu recentemente as biografias de Eric Clapton, Slash e a fascinante bio de Keith Richards. Os outros ficam caladinhos diante da atividade intelectiva do colega. Aproveito a deixa e lanço se algum deles já leu a bio do Lobão. Foi a deixa para algumas risadas seguidas do repique de Pe Lanza que abre este texto.

Aproveitando um momento em que Koba disserta sobre sua geração, dizendo que eles falam de tudo numa boa – “da vida, de sexualidade, das drogas, do mundo, do tsunami no Japão” –, pergunto se algum deles é gay. De primeira e na maior naturalidade, Pe Lanza responde: “Somos héteros”. E desbaratina: “Temos consciência de muita coisa, não somos alienados”. Quero saber então sobre o tal movimento happy rock. Novamente é Pe Lanza quem responde, revelando uma faceta bem mais comportada da que usou para desafiar Lobão: “Criamos esta onda porque a sociedade está muito escrachada. Tem garota perdendo a virgindade aos 12, 13 anos. Nossa rebeldia é contra a violência, a maldade e a promiscuidade. Somos ligados na nossa família, nos amigos e contra qualquer tipo de preconceito. Se alguém quer usar tênis colorido e calça de oncinha, o problema é dele”.

Rui Mendes

O repórter enebriado por Koba e Pe Lanza

O repórter enebriado por Koba e Pe Lanza

Todo Arthur quer Serguei

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Há três meses, fartos das presepadas de nosso incontrolável repórter, convocamos o Brasil em uma busca épica: encontrar um novo Arthur Veríssimo. Além do mesmo nome, o candidato deveeria ter a mesma audácia do Arthur do passado. Dois candidatos aceitaram o desafio máximo de um repórter excepcional: lidar com a libido e os mistérios de Serguei

 

Nelson Mello

 

 

Parece brincadeira, mas estou na corda bamba. Resignado com a tarefa de escolher o meu futuro sucessor. Há duas edições a Redação da Trip lançou um concurso procurando um possível substituto à altura deste escriba e que, de quebra, fosse meu homônimo. Sim, o gajo deveria ter o nome Arthur Veríssimo. De repente me vejo semiperplexo, diante desses dois candidatos – xarás que exalavam simpatia e alto-astral, mas que almejavam famintos ocupar minha excepcional vaga no organograma.

Os dois rapazes acompanham com atenção dobrada as minhas dicas e orientações. Percebo que a dupla está motivada e calibrada para o rito de passagem. Minha última frase os deixa aturdidos. “Tem que ter selinho, beijo na boca, igualzinho à foto que fizemos antes.” Um olha para o outro e caem numa gargalhada nervosa. Sim, para me auxiliar nessa inglória tarefa, ninguém melhor do que um dos personagens com os quais mais interagi nos últimos anos. De entrevistado a amigo, de amigo a colega de reportagens, o geriátrico e orgiástico Serguei teria o ângulo mais privilegiado para me ajudar a julgar os predicados dos candidatos ao meu posto.

A missão tinha hora marcada (21h30) na sala de espera da ponte aérea. Arthur (1) e Arthur (2) aguardam com avidez a chegada do elfo ancestral, a lenda viva Sergio Augusto Bustamante. Em suas mãos seguram a clássica plaquinha com o nome do convidado de Saquarema. Durante algumas edições na Trip, Serguei e eu já nos beijamos, vivemos aventuras amansando o rebelde Theo Becker, resgatamos Rosana (Como uma Deusa) em um karaoke. Na atual conjuntura, nosso fauno intergaláctico está no ar semanalmente com o programa Serguei Rock Show no Multishow, e recentemente assinou contrato na TV Record, onde participa do programa de Tom Cavalcante. Serguei está na mídia. Serguei está na moda.

Nossos ansiosos anfitriões continuam segurando suas plaquinhas. Executivos, atletas, donas de casa, artistas, dondocas atravessam o pórtico da saída e nada de Serguei. Vejo ao longe uma figura que se arrasta lânguida como uma iguana. Sim, é ele. Serguei aproxima-se e se joga nos meus braços. Me tasca um beijão e quer saber quem são os rapazes com as plaquinhas. Sua juba está diferente, seu rosto também não é mais o mesmo, está rejuvenescido e bochechudo. Parece um personagem dos quadros de
Hieronymus Bosch. Fico intrigado. Pergunto se havia feito lifting, cirurgia plástica ou Botox. Ele se sente lisonjeado e admirado.

Seus olhinhos analisam as possíveis presas. “Quem são eles, Arthur?” Explico sussurrando ao seu ouvido. Ele cumprimenta os xarás dando o clássico abraço de tamanduá. Na van, Serguei engata uma conversa sem limites com a dupla de Arthures. Tudo gira em torno de rock e sacanagem, e ele movimenta seus braços como um helicóptero sem eixo. Arthur (1) quer saber como é a vida, o dia a dia de nosso rock star pansexual. Serguei tergiversa e começa a falar sobre sua genitália. Serguei não tem travas no pensamento ou na língua, ele quer beijar nossos anfitriões com seus lábios carnudos. Como observador, acompanho o desempenho e a entrega dos Arthures: beijos, bitocas e muitos selinhos borbulham na sessão de fotos. A disponibilidade dos dois concorrentes é impressionante.

Serguei quer mostrar o falus adormecido. Arthur (2) pergunta ao druida se ele é o introdutor do panvegetalismo no Brasil, isto é, a religião de abraçar as árvores. Com sua memória mesozoica, Serguei esclarece que o primeiro a espalhar essa bênção de abraçar árvores foi o gênio Albert Einstein no Jardim Botânico no Rio. Balbucia que seu antigo jatobá não é mais o mesmo e que atualmente namora e fornica um belíssimo cajueiro nos arredores de Itaúna. Pergunto se ele tem alguma foto do caju amigo. Ele tosse uma sonora gargalhada.

A conversa avança e Arthur (1) embrenha querendo saber sobre a virilidade do fauno. Era tudo que Serguei desejava falar. Despeja uma sucessão de histórias de seus causos amorosos. Regurgita situações escatológicas e meigas. Repete pela bilionésima terceira vez seus encontros com Janis Joplin. Percebo que o elfo necessita de comida, oxigênio, sexo, pois sua voz começa a falhar. Convoco todos para um jantar em um charmoso restaurante nos Jardins. A figura pantagruélica de Serguei incendeia o local. Dispara sua metralhadora giratória de frases desconexas entre um ravióli ao pesto e outro. Acreditem, todos estamos cansados e esgotados de tantas fotos e falantina desenfreada. Serguei tá com a macaca, parece que recém-levantou da cama e quer seguir em frente pela noite de SP. O Pterodáctilo quer aparecer, beijar e circular.

 

Nelson Mello

 

Arthur (2) elogia a cútis de pergaminho e pergunta que tipo de exercício ele pratica, o insaciável Serguei responde: “Sexo, orgia”.Ele insiste que quer transar. Desconverso e digo para ele se jogar no baixo Augusta, que fica pertinho do restaurante. Saio de fininho. Caminhando pela rua Augusta, uma miríade de pensamentos assola minha mente e coração. A performance dos dois xarás superou todas as nossas expectativas. Nesta altura da minha vida me vejo entre a cruz e a encruzilhada. Ficar ou partir? Sem eira nem beira. Ser ou Serguei?

Quem sabe um dia abdique deste posto, porém sinto que ainda não estou preparado para tomar uma decisão de tamanha envergadura. Entrego aos desígnios do Olimpo a decisão de qual dos efebos iremos escolher? O que me aguarda? O que o destino me oferece? Estarei condenado como Napoleão a um exílio ou serei lembrado pela minha generosidade ao investir e acreditar na minha continuidade? Minha missão está cumprida? A decisão cabe a vocês, caríssimos leitores.



ARTHURES VERÍSSIMOS POR ARTHURES VERÍSSIMOS


Arthur Veríssimo Warren tem 26 anos, nascido em Maringá (PR) e morador de São Paulo. É dono da Máfia Real, uma produtora de cinema e TV.

“O Serguei não estava entendendo picas, mas estava feliz de rever o amigo.’Vamos fazer a foto do selinho.’ Me deem uma folga, acabei de ver o pinto do Serguei. Ele gosta de falar e o assunto é sempre sexo: com a Janis Joplin numa suruba, com árvore, com o que for. No restaurante começo a sacar melhor qual é a dele. No caminho de volta, Serguei desce no hotel, me dá um abraço e solta essa com um olhar sacana: ´Olha, se quiser, passa aí depois, viu?’. Valeu, Serguei, sucesso! Cacete, levei uma cantada do Serguei. Mas, por outro lado, é o Serguei. Estranho seria não levar. Agora, se estou pronto para assumir a vaga do Arthur Veríssimo original? Nós até temos coisas em comum. Também sou aberto a qualquer tipo de merda. Mas ele é muito mais expansivo, quase um personagem”.

(1º) Lugar- 0,0 cm toque concluído

Nelson Mello

 

 

 

Arthur da Silva Veríssimo tem 33 anos, vive em Santo André (SP) e ganha a vida comprando e vendendo carros.

“Queria agradecer, antes de tudo, ao já falecido seu Casimiro, que me deu esse sobrenome. Participei com a maior disposição para encarar o desafio, entrei de gaiato e decidido a abocanhar a vaga do titular. Para mim foi uma experiência extraordinária. Conheci o Serguei, um ser engraçadíssimo e inofensivo. Confesso ter ficado um pouco acanhado, nervoso, pois nunca tinha passado por tal situação. O Arthur repórter nem se fala, supergente boa.  A equipe da Trip me deixou super à vontade. E com toda certeza foi uma noite que para mim irá ficar registrada na memória. E do fundo do coração faria tudo de novo.”

(2º) Lugar- 1,2 cm até o ponto de toque

Nelson Mello

 

 

(3º) Lugar- 6,8 cm até a bitoca completa

Nelson Mello

 

 

 

Abaixo, a documentação em ordem dos candidatos.

 

Nelson Mello

 

 

 

 

 

Capim Santo

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Nelson Mello


Em uma chácara esfumaçada de Americana, Arthur Veríssimo passa uma agradável tarde na companhia de Ras Geraldinho Rastafári e os discípulos da igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil, onde o uso da Cannabis é sagrado

Da porta da igreja, escuto uma música das antigas vinda do fundo do tabernáculo. Aquele mantra eu já conhecia desde a minha púbere adolescência. "Rastafari is /Lord of Lords and Savior/He’s the mighty/Mighty onn, Thunderable, Thunderable one/Rastafari is." O hino rastafári ecoado pela voz do sumo sacerdote Peter Tosh.

Estou na sede da "primeira igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil", Americana, interior paulista. Um clima de altíssimo-astral permeia o ambiente. Somos recebidos por sorrisos e gentilezas. A área construída tem o formato da letra P e muitos sofás, mesas, cadeiras, TV de LCD, geladeira, computadores e redes. Resplandecente, surge o responsável, o simpaticíssimo Geraldo Antonio Baptista, (aka) Ras Geraldinho Rastafári. O homem é ativista social, ambientalista, publicitário, elder (ancião) da igreja Niubingui e se considera o maior expert em maconha do Brasil. Jah Rastafáriiii. Seu pensamento e raciocínio caminham lado a lado com o maior ativista pró-hemp de todos os tempos, Jack Herer, autor da obra-prima The Emperor Wears no Clothes, que conta tudo aquilo que você queria saber sobre a maconha, mas não aprendeu na escola.

Ras Geraldinho Rastafári não se faz de rogado e acende um turbobaseado. Suas sábias palavras são dignas de um antropólogo e sacerdote radical da nova era. Ele se parece com alguém? Aciono minha memória e depois de rebobinar meu hard disk encontro num canto recôndito o personagem. Adivinhem? Freewheelin Franklin, líder dos enfumaçados Freak Brothers, das histórias alucinantes de Gilbert Shelton. A mente de Ras Geraldinho é puro néctar de THC, seus desdobramentos e sinapses revelam um universo que poucos conhecem.

Nelson Mello

Ras Geraldinho com sua Bíblia customizada

Ras Geraldinho com sua Bíblia customizada

A fumaça no ambiente é densa e perfumada. Ras Geraldinho acende outro baseado e nos mostra uma Bíblia sagrada branca com a folha da Cannabis na capa. A edição é a famosa versão do Rei James para a igreja anglicana. Segundo Geraldinho, no livro encontram-se diversas citações relacionadas à maconha. Peço para Nelson, o fotógrafo que me acompanha, registrar algumas passagens e saio com o profeta de Americana para conhecer suas plantas no terreno da igreja. Conto ao Ras que já estive em duas edições da Cannabis Cup em Amsterdã. Admirado, Geraldinho flutua até sua planta number one. Fico boquiaberto diante de um imenso arbusto de maconha em seu estado de maturidade, exalando um aroma telúrico.

Pergunto ao homem como foi o processo de formatar a igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil. "Arthur, há cerca de seis anos estabeleci a igreja nesta chácara. Sou delegado da Primeira Conferência Nacional de Saúde Ambiental dos Ministérios da Saúde, do Meio Ambiente e das Cidades, onde representei minha igreja e defendi estudos para o uso medicinal e industrial da Cannabis. Este local é uma entidade religiosa de direito e de fato, como atestado pelo alvará fornecido pela Prefeitura Municipal de Americana", explica o sacerdote.

Para o advogado Daniel Passos, o alvará soa como algo temporário. Aos olhos da lei brasileira, fumar um baseado em uma igreja Rastafári não é o mesmo que tomar um chá de ayahuasca em uma cerimônia do Santo Daime. "A autorização para o Daime é protegida pela Funai e pelo Estatuto do Índio. O Brasil é um Estado laico. Logo esses procedimentos para a liberação de substâncias psicotrópicas em rituais religiosos devem ser observados com cautela".

Quando retornamos ao salão principal, isto é, ao tabernáculo, uma galera de mais de 30 pessoas aguarda a exibição do documentário Run From The Cure, sobre o uso medicinal da maconha. Aproveito a deixa para conversar com alguns integrantes da igreja. Ras Junior Ali é o vice-presidente da entidade. Mora em Piracicaba, trabalha com informática e fuma da erva sagrada há mais de dez anos. Segundo Ras Junior, o espaço da igreja está aberto para qualquer pessoa. Na Niubingui o culto não tem horário preestabelecido e o fundamental é o ato de compartilhar ideias e debater assuntos da sociedade. Marlene, cicloativista e namorada de Ras Geraldo, é tesoureira, organiza as visitas e garante a reciclagem de todo o lixo da chácara. Samir, o filho de 20 anos de Marlene, é totalmente rastafári. O próprio se aproxima durante a conversa com Marlene. Sua aura emana boas vibrações. "Minha vida é totalmente voltada à cultura rastafári. Alimentação, leitura, música e filosofia. Sou rasta do cabelo ao coração", diz. Uma moça alta e loira entra na conversa. É Sister Denise, que frequenta os cultos há dois anos e meio e tornou-se secretaria da igreja Niubingui. Namorada de Ras Vinicius, não se considera rasta, mas é uma grande admiradora do estilo de vida.

No fim do documentário, Ras Geraldinho abriu a reunião para um debate sobre os rumos da maconha. Pergunto ao mestre se ele já teve problemas com a justiça. "Em julho passado a Dise [Delegacia de Investigação sobre Entorpecentes] invadiu minha igreja, levando seis pés de maconha plantados para serem usados na liturgia religiosa. Destruíram material religioso e me levaram para prestar depoimento. Fui informado de que seria indiciado e estou esperando o chamado da Justiça para responder, mas até agora nada andou. Meus direitos foram violados, os policiais entraram sem mandado judicial. Na nossa igreja o uso da planta sagrada é estritamente para consagração. Faço uso da planta há mais de 35 anos, sem a mínima relação com práticas ilícitas ou criminosas".

Ras Geraldinho acende outro e convida todos a compartilhar uma refeição, uma deliciosa sopa com ingredientes orgânicos. Alimentados e refeitos, nos organizamos e nos despedimos. Na saída, Ras Geraldinho, emocionado, agradece nossa visita e convida-nos para o próximo sarau. Abençoado seja, Jah Rastafári. Até a próxima.

Afuá urgente

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Na borda oeste da Ilha de Marajó fica um dos raríssimos lugares no mundo onde carros são proibidos. por lá, as bicicletas reinam soberanas. Nosso repórter excepcional foi até o delta do rio Amazonas para descobrir como é viver sobre duas rodas

 

Nelson Mello

 

Os bons ventos amazônicos e o movimento da maré indicavam que teríamos uma noite exuberante navegando o rio Amazonas. A pontualidade ribeirinha foi britânica, e a embarcação Fé em Deus soltou suas amarras precisamente às 23h, conforme estabelecido, do porto de Macapá, capital do Amapá. O barco se deslocava suavemente pelo delta do rio Amazonas, com passageiros em excesso e tecnobrega bombando no convés. Dezenas de pessoas se espremiam entre as redes procurando um cantinho para a travessia. Segundo o capitão, seriam cinco horas para vencer os 100 km até a pequena Afuá, cidade encravada em um ponto da borda oeste da imensa Ilha de Marajó. Durante um bom tempo fiquei observando a abóboda celestial com suas estrelas e constelações, e lá pelas tantas fui esticar o corpo numa rede. Quando peguei no sono senti o barco chacoalhando intensamente. Sonolento, olhei para os lados e captei imensa balbúrdia: pessoas choravam e clamavam por Jesus para apaziguar as águas e os ventos. A água espirrava pelo convés e laterais do Fé em Deus com força titânica. Não deu em nada. Da mesma forma como apareceu repentinamente a borrasca, um oceano de tranquilidade instalou-se no turbulento rio Amazonas. Exatamente às quatro da madrugada a embarcação ancorava no portinho de Afuá.

Caminhamos duas esquinas e fomos descansar no hotel Afuá. Cochilei por duas horinhas e saí para farejar, borbulhava de curiosidade. Afuá parece uma cidade cenográfica, ou então parada no tempo. As ruas e as casas são todas contruídas sobre pontes e palafitas de madeira, mantendo a cidade acima da várzea, já que Afuá é eternamente alagada pelas águas dos rios. Por lei municipal, veículos motorizados são proibidos de trafegar seus 8.373 km 2. Sendo assim, o meio de transporte único é a bicicleta e invencionices derivadas. "Nossa cidade é um laboratório em plena selva. Não existe poluição veicular, somos uma cidade oxigenada em todos os sentidos, aqui todo mundo circula de bicicleta e triciclos. O lazer, a atividade física e o trabalho estão conectados com a pedalada", declara nosso anfitrião, Raimundo Carlos, o Pisca, secretário da Cultura, Esporte e Lazer da cidade de 40 mil habitantes – e 15 mil bicicletas.

Nossa conversa foi amavelmente interrompida por um destacado cidadão afuense, o radialista, artista e inventor Raimundo do Socorro Souza Gonçalves, ou simplesmente Sarito. Homem cheio de ginga e talento, Sarito foi criador da primeira geração local de bicitáxis. "Resolvi construir um veículo em 1995 para passear com minha família. O primeiro protótipo era de madeira, tinha três rodas e capacidade para quatro pessoas. Foi uma revolução. Desde então o bicitáxi se aperfeiçoou e ganhou quatro rodas." Cheio de amor pra dar, Sarito nos levou à radio Afuá e nos colocou ao vivo. Fui entrevistado e o papo rolou solto.

Na pousada Barriga Cheia alugamos nossas bicicletas e saímos com a missão de percorrer a ciclovia que envolve toda a cidade. As ruas e as vias de acesso na sua maioria são estreitas, o ciclista tem que estar atento pois não existe proteção nas laterais das pistas e numa vacilada pode raspar, trombar com outro bólido e se estatelar no terreno alagado, 1 m abaixo. Todas as casas são de madeira, construídas em cima de palafitas. Segundo a prefeitura, são 25 km de ciclovias na área urbana de Afuá, sendo 60% de madeira e o restante de concreto.

Veículos motorizados são proibidos na cidade de 40 mil habitantes e 15 mil bicicletas. "Somos uma cidade oxigenada em todos os sentidos", diz Pisca, nosso anfitrião

Na exuberante vegetação que circunda Afuá, a típica floresta de várzea com muita virola, anani, macacaúba e palmeiras como buruti, babaçu, murumuru e o delicioso açaí. Paramos em uma vendinha e pedimos uma cuia de açaí, que por lá é servido quente, sem mel, granola ou açúcar. Para acompanhar oferecem farinha de tapioca, peixe ou camarão. O caldo é denso e o sabor é intenso. Bem estranho para quem não está habituado. Depois de algumas colheradas me senti como o marinheiro Popeye, cheio de energia e procurando minha Olivia.

Boto misterioso

Nas vias principais o movimento é intenso. Crianças indo para a escola, senhoras pedalando com suas compras e bicitáxis. O primeiro que surgiu foi a ambulância, que saía do hospital para um atendimento. O veículo possui quatro rodas, capota e maca. Em seguida, como uma aparição, surge de dentro do hospital o "boto misterioso" Mister Sarito. Tinindo inspiração, nos convida para conhecer outras quebradas de Afuá. Todos cumprimentam o mestre de cerimônias, principalmente as mulheres – o homem diz que no passado foi grande namorador, mas que hoje é apenas educado. Pelas ruas, não há semáforos ou guardas e o fluxo das magrelas é incessante. Na pedalada, Sarito nos leva a uma das três oficinas da cidade. Um emaranhado de rodas, pneus, aros e quadros emolduram a oficina do sehor Pipoca. O consertador nos explica que existe uma procura muito grande dos moradores para personalizar bicicletas e bicitáxis, veículos produzidos da junção de duas bicicletas, unidas por uma estrutura de aço. "Levamos umas quatro semanas para produzir a carroceria e os acessórios como volantes adaptados aos pedais, painéis, molas, porta-malas, para-choque, sistema para CD e DVD", explica Pipoca. Modelos assim oscilam entre R$ 3 mil e R$ 7 mil. Fiz um test drive com um bólido de quatro rodas e direção de carro. Os primeiros movimentos foram um sacrifício, mas depois peguei o jeito e circulei a trancos e barrancos pelas ruas estreitas.

Sarito parece um primo distante do Serguei. Metralha ditos populares e lendas locais como uma rádio ambulante, destila que em Afuá os moradores não vivem estressados, angustiados, depressivos ou com doenças respiratórias como nos grandes centros. "Em Afuá todo mundo pedala."

Na volta para o hotel o sol castigava, e a maioria dos ciclistas pedalava com sombrinhas e guarda-sóis agregados às magrelas. Nosso retorno para Marabá estava marcado para 21h. Renovados, retornamos à praça ao anoitecer e encontramos um veículo tunado cheio de estilo. De carroceria verde e com música explodindo, a caranga chamava a atenção. O dono, Oderley Monteiro Lobato, 28 anos, é comerciante em Afuá. Gastou R$ 5 mil para construir sua
joaninha verde amazônica e não parou por aí, está montando outro possante envenenado. O atual é equipado com DVD, direção de carro, molas, retrovisores, banco estofado, freio a mão e câmbio de três marchas. Oderley modestamente acrescenta que existem outros modelos mais invocados como a "Ferrari", o "Batmóvel" e o "Jipão".

Assim findava nossa estada naquela fronteira. Afuá é um laboratório amazônico em que a alternativa sustentável da bicicleta deu certo. Um conceito único de qualidade de vida e mobilidade urbana. Vai pedalar.

Ihhh, Deu Zebra!

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Nosso repórter excepcional vai ao Zooparque de Itatiba para nos relatar o que é estar na pele (ou pelúcia) de um animal enjaulado

Vou chegando de mansinho, minha indumentária é um híbrido de inca venusiano com Equus burchelli antiquorum – a conhecida zebra. Na savana africana, a herbívora é uma das presas mais cobiçadas por leões, hienas e outros felinos. Suas listras servem de camuflagem, uma vez que, quando a manada está em movimento, as riscas provocam ilusão de óptica nos predadores que não conseguem identificar e isolar o animal. Caminho grávido de dúvidas e receios no setor dos rinocerontes-brancos do Zooparque de Itatiba, interior de São Paulo. No recinto de 6000 m2 que reproduz fielmente a savana africana, habitam cinco rinocerontes-brancos com mais de 3 t. O rinoceronte-branco é o segundo maior mamífero terrestre, só perdendo para o elefante. Mede 2 m de altura e 5 m de comprimento.

Aprecio a distância a movimentação desses imensos mamíferos e converso com os responsáveis do Zooparque sobre os hábitos e a vida desses animais. Sou deslocado para o setor onde os animais fazem suas generosas refeições. Fico miudinho. Os rinocerontes são conhecidos pela péssima visão e são imprevisíveis. Apesar da miopia possuem excelente olfato e audição e atacam, sem mais nem menos, árvores, veículos e cupinzeiros na savana africana. Lá estava este incauto inca venusiano, ops, zebra, de gaiato no habitat de um grupo de rinocerontes prestes a encarar sua lauta refeição de fim de tarde. Seguia a orientação do tratador. Esperava os rinos no recinto que dá acesso ao refeitório.

Minha fantasia não causava nenhuma reação. Me esgueirava pelos cantos próximo às saídas de emergência. Com os sentidos potencializados e usando poderosas lentes acompanhava tudo com um olhar de 360 graus. Suava frio na fantasia de viscose. Num dado momento, percebi que um dos rinos havia detectado meu suador. Movimentava sua cabeça farejando minha sombra. Como uma arma letal, seu chifre apontou para meu corpo zebrado. Avançou como um míssil. Como um velociraptor, não titubeei e driblei os obstáculos, afastando-me do perigo iminente.

Moral da história: não se meta a besta se vestindo de zebrinha esquálida no habitat do rinos ou pode dar zebra. E afinal: a zebra é preta de listras brancas ou branca de listras pretas? 

Educação, garbo e elegância

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 Rui Mendes

 

Em nossa eterna busca para aprimorar os modos de nosso repórter excepcional, decidimos enviá-lo a um curso da milenar arte da etiqueta para ver se uma lição sobre o manejo de talheres e guardanapos daria um jeito no ogro da Trip

Desde a caverna do sadhu solitário no Himalaia até o palácio do sultão de Brunei, existem muitas regras, protocolos e atitudes que devemos aprender para melhorar nosso convívio social. Bons modos são aliados imprescindíveis para qualquer pessoa, local ou situação. Mas, no trânsito, em restaurantes, aeroportos, shows, no trabalho e nas ruas, notamos que os ogros e seus pares femininos infelizmente ainda dominam o cenário. Há pouquíssimos Shreks bem-educados.

Para me lapidar e melhorar a minha vida, resolvi me submeter a um curso de etiqueta, para que possamos juntos exonerar algumas falhas arraigadas. Saí em busca do melhor professor para elucidar os mistérios da conduta à mesa, do uso de talheres, da postura e do controle no exibicionismo, indo da língua solta à vestimenta apropriada.

A placa na frente da casa no Morumbi, zona sul de São Paulo, indica que ali é um local de boas maneiras. Logo na entrada fui recebido com polidez e cortesia pela professora Virgínia Gargiulo, que ensina a arte de receber e ser recebido. A anfitriã nos conduz para a ala da residência onde ministra suas aulas de lapidação social. A nossa será um resumo geral do curso que ela desenvolve em módulos de quatro horas.

Sua casa é repleta de louças, pratarias, quadros e vasos da dinastia Ming herdados da família. Seu pai, Humberto Gargiulo, foi fundador da ancestral TV Tupi, e ela teve como padrinho ninguém menos que Assis Chateaubriand – coisa de gente chique de verdade. Com braço e mão levemente estendidos, ela orienta para onde devemos ir e nos sentar. Sou aluno, repórter e convidado. Me sento no sofá e inicio perguntas vitais. Quero saber de onde vem a herança de bons modos e requinte. Ela sorri discretamente e narra sua saga. Nascida em berço de ouro, Virgínia teve em sua casa, desde a infância, uma rígida governanta prussiana. Estudou em colégio interno na Suíça por muitos anos e foi coleguinha de filhos de sheiks, sultões, grão-vizires e nababos.

Rui Mendes

Arthur acaricia um guardanapo de pano com seu toque tântrico

Arthur acaricia um guardanapo de pano com seu toque tântrico

A zona do perdigoto
Percebo que ela mantém certa distância no sofá. Pergunto a Virgínia qual o motivo. Com humor polido, ela diz que esse “círculo imaginário” de distância é uma das regras fundamentais nos encontros e desencontros sociais, para não sermos incomodados e surpreendidos com os perdigotos alheios. Explicando: perdigotos são nada mais que salpicos de saliva lançados por alguém ao falar. Inspirada, ela nos passa detalhes minuciosos de gafes na sociedade em que os perdigotos atuaram em profusão. As risadas são contidas, mas descontraem ambos os lados, sem perder a postura nem a compostura.

Nossa aula avança e recebo um elogio. Virgínia declara que minha postura no sofá é impecável. Fora seus alunos veteranos, ela nunca havia estado com repórter tão erectus. Fico lisonjeado. Agradeço e controlo meus perdigotos. Mas em seguida, com a bexiga prestes a explodir, pergunto do banheiro. Tomo uma ensaboada: Virgínia declara que banheiro é para se banhar e que a palavra é toalete. Fico na miúda.

Na volta do aposento sanitário, ooops toalete, sou conduzido à sala de jantar, onde os segredos do uso de taças, talheres, guardanapos e pratos me aguardam. Sento-me na cadeira indicada pela maestrina. Ela declara que o certo é o anfitrião ou a dona da casa decidir onde o convidado irá sentar. “Você não pode ir sentando em qualquer lugar, é uma gafe gravíssima. É fundamental definir os lugares antes da refeição.” Perfeitamente, Virgínia, estou aqui para aprender.

Ela prossegue: “Na mesa, Arthur, as conversas têm que ser amenas e positivas, nada de doença ou fofocar sobre vida alheia. CPI da vida dos outros é de 19ª categoria. Tudo aquilo que você fala de maledicência sobre alguém que não está presente volta com a mesma intensidade”. Concordo efusivamente. É a conhecidíssima lei do karma, de causa e efeito. Quando à mesa, o tal karma volta em forma de dor de estômago.

Na távola, recebo um leque de explicações didáticas sobre como proceder com taças, talheres e seus coadjuvantes. Durante a refeição, quando os talheres não estão sendo usados, o correto é deixar os antebraços pousados na borda da mesa, nunca, mas nunca mesmo, no colo ou debaixo da mesa; pousar apenas um dos cotovelos na borda tudo bem, mas nunca os dois. Ao fazer uma paradinha no meio da refeição para beber, trocar ideia ou usar o guardanapo, deixe os talheres dentro do prato, na diagonal, o garfo à esquerda, voltado para baixo, e a faca à direita, com o lado afiado voltado para dentro. Para o prato ser retirado, você tem que deixar os talheres na posição dos ponteiros no horário de 10h20. Complexo, não?

Ao longo da aula, vamos aprendendo como dobrar uma alface, comer pizza, destrinchar lagosta e até a supertécnica de retirar o caroço da azeitona na empadinha. No caso de canhotos como eu, o lance é esperar que o primeiro prato seja servido e então, na suavidade e sem constrangimento, trocar de lado os talheres. Sem alvoroço. No fim, peço a Virgínia alguma bibliografia. Ela me indica os livros de Cláudia Matarazzo e mostra uma obra ilustradíssima em inglês: For the Royal Table: Dining at the Palace, com cenas coruscantes dos banquetes no Palácio de Buckingham. Antes de me despedir, a pergunta definitiva: e se a pessoa sofrer de flatulência e estiver prestes a soltar um pum? Saia sutilmente e flutue até o toalete; um bom anfitrião sempre deixará no lavabo medicamentos para essas situações urgentes, ela ensina. Anotou?

Rui Mendes

Sob o olhar desconfiado de Virgínia, exibe o livro For the Royal Table: Dining at the Palace

Sob o olhar desconfiado de Virgínia, exibe o livro For the Royal Table: Dining at the Palace

O guia de boas maneiras do Arthur 

1 - Em Papua Nova Guiné, quando os aborígenes locais lhe oferecerem uma koteca (protetor peniano), nunca segure a peça com uma mão apenas, pois, segundo o chefe tribal, o que já estava mole ficará mortinho pelo resto da vida.

2 - Nunca entre numa caverna de saddhus sem ser convidado, pois basta o eremita olhar torto para você ter um ano repleto de obstáculos e pleno de urticárias.

3 - No Paquistão, e sobretudo em Peshawar, nem pense em olhar ou dar beijinho nas muçulmanas. Não é só falta de educação: você corre risco de vida.

4 - Em Bangcoc, na Tailândia, é considerado falta de decoro não tomar um coquetel afrodisíaco que tem como base o sangue da cobra, mesmo sabendo que você pode ficar despirocado.

5 - Em muitas regiões da Índia, fique esperto com a famosa mão de amiguinho. Depois de ter conhecido o sujeito há 10 min, alguns indianos já querem engatar a mãozinha e entrelaçar os dedos. Na dúvida, mãos no bolso!

6 - Se você for mulher, evite dar dois ou três beijos ao cumprimentar homens em certos lugares da Ásia. No mesmo instante, o tipo que você beijou irá grudar feito carrapato, mesmo se seu marido estiver presente.

7 - Se te oferecerem uma “sopa de Cardan” em La Paz, capital da Bolívia, é falta de educação recusá-la, mesmo sabendo que seu principal ingrediente é um vergalhão de boi cortado em fatias.

8 - Se você ver um zumbi se estatelar no chão em um festival de vodu no Haiti, levante o sujeito o quanto antes, segurando-o pelo sovaco com a mão direita. Nunca o levante com as duas mãos, ou sua vida pode ficar envoduzada.

9 - Na festa do padre Cícero, quando for arrodear a estátua do padim, nunca o faça no sentido anti-horário. Não é apenas uma baita falta de etiqueta: você corre o risco de ser esmagado pela romaria no sentido contrário.

10 - Na Groenlândia, faz parte da tradição dos esquimós oferecer a esposa para passar a noite com o visitante. Eles costumam lançar um sorriso maroto e convidar para comer um filé de foca em suas casas. Dessa etiqueta milenar, eu estou fora!

Significa?

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Kiko Ferrite

Kiko Ferrite

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Kiko Ferrite

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Kiko Ferrite

Kiko Ferrite

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Silvio Santos vem aí

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Em protesto contra as constantes recusas de Silvio Santos a dar entrevistas, nosso repórter excepcional monta sua barraca na praça em frente ao salão do famoso coiffeur do apresentador. Objetivo: arrancar algumas pílulas de sabedoria da lenda viva da TV

 

Assisto pasmo ao sísmico 2011. Manifestações populares, concentrações, insurreições, ocupações e muita indignação. O leitor atento acompanhou os desdobramentos dos protestos da primavera árabe, a mobilização na Espanha e o movimento Occupy Wall Street. Em São Paulo, os sem-teto ocuparam uma série de edifícios e na USP explodiu um bafafá sem precedentes. Desemprego, corrupção, sistema de saúde obsoleto, ganância, violência estatal, serviços moribundos, ortodoxia islâmica, sistema financeiro corroído reverberam na psiquê do Homo sapiens. Todo mundo que tem uma causa está levantando a voz e se manifestando.

Inspirado por esses levantes, resolvi tornar pública uma causa que há muito assolava a Trip: entrevistar Silvio Santos. Inflamado, inconformado, tornei-me um porta-voz para declarar nossa indignação diante das inúmeras negativas. Marchei ao salão do coiffeur que há décadas cuida, com muito esmero, da juba de Silvio Santos. Decidi ocupar o Jassa.

Nelson Mello

A visita flower power de Vic Meireles

A visita flower power de Vic Meireles

Inspirados nos detetives Olho Vivo e Faro Fino, investigamos detalhadamente os possíveis movimentos de SS. Qual seria o dia em que ele iria ao Jassa? Segundo uma fonte incontestável, Silvio tem há séculos o hábito de ir ao Jassa pela manhã para lapidar seu penteado nos dias em que grava seus programas. Como sabíamos que na quarta-feira haveria gravação, montamos nosso bunker em praça pública, na calada da noite.

Nossa barraca se destacava ao lado de uma banca de jornal na avenida Faria Lima, colada com a Cidade Jardim, duas artérias vitais da cidade de São Paulo. A produção na noite fria dava o tom da ocupação zen. Fogareiro para fazer chá de darjelling orgânico (um capricho que não passo sem), touca de vicunha boliviana (necessidade capilar), manto sagrado do Himalaia bordado por monges cegos (um must have de meu closet) e uma felpuda máscara para dormir, souvenir de uma viagem de primeira classe para Dubai.

Rebobinava algumas lembranças de passagens da minha vida em que estivera acampado. Festival de Iacanga, Maromba, Trancoso e as paleolíticas festas do Rajneesh na Califórnia. Período mesozoico deste ancestral homem de Java. Sempre odiei acampar. 
Mesmo assim, relaxei. Minha causa é maior que o desconforto. Tanto que caí nos braços de Morfeu, em meio ao zum-zum-zum de carros, sirenes e ônibus, e sonhei como um cataléptico inebriado.

Estava frente a frente com Silvio Santos, e ele me indicava para abrir a “porta da esperança”. Seus bordões ricocheteavam nessa aventura pelo umbral do desconhecido. O primeiro foi o sonoro grito de “Róóquei!” Suas risadas e seus haikais conduziam minha trip. “Vem pra cá, vem pra cá. É solteiro, casado ou tico-tico no fubá? Quem quer dinheiro? Qual sua caravana?”

Acordei de sopetão. Passara um par de horas delirando com esse encontro inusitado com Silvio Santos. Estava embriagado com a fleuma poética do Merlin do Baú da Felicidade. Minha mente sapecava com a possibilidade do contato imediato de primeiro grau com Silvio. Missão impossível?

Às 5h15 da matina, como por encanto, desfilando pelo canteiro de cimento da avenida Faria Lima, surge o primeiro simpatizante da nossa causa, o florista Vic Meirelles. Abraçado a um vaso de arruda, deslizando de pantufas, cobertor da vovó e travesseiro de plumas, Vic transbordava alto astral. Sua solidariedade é contagiante. Ocupa Jassa é nosso lema.

O sol nasce, e meu dia se ilumina com a presença de Prem Baba, o guru do amor. Pergunto a ele sobre as manifestações recentes no mundo árabe, na Europa e nos Estados Unidos. Qual seria o melhor remédio diante de tamanho mal-estar da civilização? Qual o desejo oculto por trás dessa metafísica Porta da Esperança? Prem Baba avisa ser impossível conter esse impulso de rebeldia popular. Seu conselho é voltar-se para dentro buscando a paz e a verdade dentro de si mesmo, através da meditação, da oração e da comunhão com o plano espiritual. No dia de seu aniversário, com uma agenda repleta de compromissos e comemorações, Prem Baba encontrou tempo para me presentear com palavras de força e solidariedade à nossa causa. Ocupa Jassa.

Nelson Mello

O guru Prem Baba aderiu de corpo e alma

O guru Prem Baba aderiu de corpo e alma

O tempo passava e nada de Silvio. Mas, de repente, como um avatar de si mesmo, vejo o apresentador estacionar seu bólido na porta do Jassa e descer solenemente. Deu um aceno para nossa equipe e penetrou a passos largos no interior do salão. Silvio percebeu nossa intenção e desbaratinou. Ele é capaz de dar nó em pingo de éter usando luvas de boxe. Estávamos prestes a ficar face a face com Silvio Santos, e não deixaria escapar de nenhuma maneira essa oportunidade. E, então, fomos surpreendidos pelo sorriso maroto do apresentador Otávio Mesquita. Velho conhecido, Otávio também tinha hora marcada com o Jassa. Comovido com nossa empreitada, ele promete intervir diretamente com Silvio. Otávio está com o Ocupa Jassa!

Baú da felicidade

Após 40 minutos, eis que surge Silvio Santos. Educado e atencioso, SS emite a primeira frase: “Oi, oi, mas que recepção. Pode falar, meu filho, o que você deseja?”. Dançando e rodando, solto o verbo: “Desculpe perturbá-lo, mas nós representamos a revista Trip, que está fazendo 25 anos. Trouxe este livro de presente para você”. Entrego a ele o calhamaço Karma pop, sobre as minhas aventuras pela Índia. Silvio exclama: “Muito obrigado! Você é muito gentil”. Eu emendo: “Silvio, fui seu funcionário por três anos”. Rápido e desconcertante, ele me dá um corte e complementa: “OK, muito bom”. Insisto que gostaríamos de saber sua opinião sobre as ocupações e os protestos ao redor do mundo. Silvio dá um salto triplo e desce em um parafuso mental: “A única coisa que posso dizer a vocês é que no próximo domingo nós faremos uma liquidação na avenida Ataliba Leonel. Uma megaliquidação dos produtos que sobraram do Baú da Felicidade”.

Silvio é um Houdini com as palavras. Esconde minha pergunta e responde com um discurso do virtuoso camelô. “Oi, oi, oi, esses produtos serão vendidos por preços inferiores aos de fábrica. Quem quiser ir neste domingo no antigo Cine Sol poderá encontrar mercadorias com preços razoáveis. Além disso, vocês podem sintonizar diariamente o Programa do Ratinho e no domingo tem o programa do Silvio Santos. Uma novela boa, boa mesmo, é a Amor e revolução. Agora, outra coisa boa, a Hebe, está na RedeTV, né?”

Percebo que nosso prazo de validade havia se escoado. Como um ninja, SS dribla nossa equipe e suavemente mergulha em sua caranga dando um último adeus. Fico ali, na calçada da fama, digerindo a mensagem do Messias na porta do Jassa. Humildemente, desmontamos nossa barraca e desocupamos a praça.

Hoje carrego comigo uma piqueteira certeza. Protestar adianta! E o povo, mesmo quando é um conjunto unitário, pode tudo quando leva às ruas sua causa. Retornei em êxtase para minha cama king size, iluminado pelas palavras do guru do Baú: “Do mundo nada se leva! Vamos sorrir e cantar!”.

Agradecimento: Nautika.com.br

Cabra cego

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Desafiamos Arthur a encarar as trevas. De olhos vendados, ele enfrentou de um bife de soja a uma montanha-russa para refletir sobre sua própria condição e para tentar entender o que é uma vida no breu

 

Há muito fui incumbido de ser a cobaia sênior nos experimentos xamânicos, sociais, antropológicos e sensitivos desta tripulação que é a Trip. Desta vez este precioso corpo humano passaria por uma experiência de completa mudança na estrutura, na anatomia e no comportamento: viveria um dia como deficiente visual, totalmente vendado. Estabelecemos uma rotina estilo mix em São Paulo: começaríamos o dia com uma prática de asthanga yoga, para depois desbundar pelo Playcenter, dar um rolê na avenida Paulista, almoçar num buffet vegetariano e, por fim, passear pelo MIS (Museu da Imagem e do Som).

Quando os emissários da Trip surgiram em casa pela manhã, conheci a figura vital desse dia, o estagiário Hivanildo Lopes, da equipe de vídeo da editora. Ele foi imediatamente promovido a meu guia vidente – como são chamadas as pessoas que conduzem deficientes visuais. Deixei de lado minhas grossas lentes de miopia e fui presenteado com uns óculos de natação completamente lacrados com fita isolante. Meu mundo escurece e mergulho na penumbra, perco referências e sinto desconforto. Hivanildo se manifesta e me leva para a sala. Meus sentidos encontram-se à flor da pele e mando ver na prática de ioga. Durante os movimentos, purifico com intensidade meus órgãos internos e externos. A impossibilidade de enxergar me impedia de desviar a atenção, deixando a prática ainda mais renovadora. Suo feito um beduíno. Ao final, no relaxamento, viajo pelas entranhas do meu corpo e dou um cochilo. Desperto em outra dimensão, completamente cego e doido por um banho. Tomo uma chuveirada, me enxugo e, com extrema paciência, coloco as roupas que havia previamente colocado sobre a cama, seguindo metodicamente as orientações que havia gravado em minha memória.

Saio ancorado no braço esquerdo do infalível Hivanildo. Seguindo orientação prévia da Fundação Dorina Nowill (de apoio a deficientes visuais), seguro na altura de seu cotovelo e deixo o braço flexionado a 90 graus. A posição permite ao portador de deficiência interpretar informações verbais e táteis do corpo do guia vidente. Nos primeiros passos percebi que caminhava no estilo Stevie Wonder, cabeça inclinada para o alto. Em poucos minutos cortávamos a cidade em uma van rumo ao Playcenter. Ao chegar, sou conduzido por uma funcionária até uma extremidade do parque onde se encontra a montanha-russa. Escuto e sinto o barulho ensurdecedor das engrenagens e do motor do brinquedo. Vejo com os ouvidos e ouço com a pele. Instalado no assento da montanha-russa, sinto um tranco fantasmagórico e uma repuxada que chacoalha minhas vísceras. Tudo vibra ao meu redor, internamente meu corpo é brasa incandescente. O carrinho sai em disparada. Na primeira subida respiro fundo e reflito sobre a roubada de estar lacrado e preso ao assento sem poder ver nadinha. Mergulho no abismo e caio em um precipício sem cores ou luzes. Loopings, curvas, quedas, subidas e finalmente a velocidade diminuiu. Fiquei travadinho no meio das engrenagens onde me colocaram. Não conseguia sintonizar o que havia se passado. Então escuto uma voz maliciosa: “Você aguenta mais uma?”. Era Kiko, o fotógrafo. Fazer o quê? Ossos do ofício. O repuxo inicial e a subida íngreme já me eram familiares, estava mais seguro. Foi vapt-vupt, mas ao final tive que ser arrancado, pois estava grudado no assento como ventosa de polvo. Sentia um baita mal-estar, minha mente e meus órgãos internos continuavam a dar voltas. Solicitei com muita humildade para me deitar o mais rápido possível. Estava prestes a ter um treco. Minha única solução era respirar, respirar e respirar para recuperar o equilíbrio perdido. Mesmo com uma náusea cabulosa, fazia uma revisão e percorria corredores escondidos e passagens secretas da minha psique. Ufa.

Reestruturado, partimos para a avenida Paulista, onde iria percorrer parte do piso tátil que auxilia deficientes visuais por 2,5 quilômetros de calçadas. Caminho firme e seguro com Hivanildo, na região do parque Trianon e do Masp. Sinto com intensidade o cheiro de cigarro, gasolina, o perfume e o bodum das pessoas. Dou uma mínima vacilada e já tomo um esbarrão. Reengato com firmeza em Hivanildo. Pergunto como ele está vestido. “Tênis, camiseta e bermuda saruel.” Como uma machadada, sou invadido por uma lembrança cortante de ter conhecido em uma viagem aos confins da Índia uma figura incrível de nome Saru Well. Instantaneamente batizo Hivanildo de Saru Well e ele adora. Em seguida, sou deslocado para perto de uma pessoa pregando o fim do mundo e garantindo que Vênus vai explodir. Pergunto de onde ele tira tanta certeza sobre o final dos tempos. Ele diz que o cataclismo irá ocorrer dia 20 de dezembro próximo por aqui e no Japão no dia seguinte, tudo supostamente baseado nos maias e na Bíblia. Começo a ter náuseas, deixo o profeta apocalíptico falando sozinho e sigo em frente.

É hora do almoço. Sou deslocado para dentro do veículo, e abrimos caminho pela cidade. Como por encanto, sou retirado do carro e caminho um quarteirão até o restaurante. Meus sentidos estão aguçados. Sinto o odor do feijão, da pimenta e da carne de soja na porta de entrada. Uma funcionária me ajuda a compor o prato, que devoro com avidez e prazer. Satisfeito, seguimos para a última tarefa: percorrer as instalações do MIS.

No interior do museu sou informado sobre as exposições que acontecem no local, como a do desenhista polaco Piotr Kunc. Impossibilitado de fazer qualquer avaliação visual, deixo as reflexões invadirem minha mente. Compreendo que a maioria das pessoas vive em uma cegueira absoluta, em seus estreitos mundinhos, comandadas pelo olhar de outros. Pessoas cegas pelo ódio, a cobiça, a inveja, o amor, a fé, o dinheiro, o poder e a mentira. O que constato é que posso ver sem olhar: a imaginação transfigura o mundo. Ao final, tiro o aparato dos meus olhos e agradeço profundamente a Saru Well por me ajudar a enxergar aquilo que não conhecia das entranhas do meu ser.

Agradecimentos: Playcenter www.playcenter.com.br, MIS www.mis-sp.org.br, Restaurante Cachoeira Tropical www.cachoeiratropical.com.br, Laramara - Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual www.laramara.org.br

 

Famoso quem

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Destacamos o pessoal do nosso DVA (Departamento Verificador de Anonimato) para levantar a tenda num calçadão de Osasco com uma faixa sem maiores explicações: “Tire uma foto com o grande Arthur Veríssimo”. Quantos transeuntes reconheceriam o mito do jornalismo excepcional? Quantos iriam na onda? Alguém haveria de ignorá-lo? Confira o resultado da nossa experiência nas memórias da própria cobaia

Uma dupla de adolescentes quer porque quer tirar uma fotinho. Ana Paula e Michele espumam alegria. Curtiam o programa Manhã Maior na RedeTV e se lançaram nos meus braços para o clique. O tempo escoava e continuava empoleirado na tenda indiana, onde eu recebia visitas agradáveis ou nem tanto. Eliana com seu bebê quis tirar uma foto a todo custo. Colocou o bebê no meu colo e, enquanto o momento era registrado, senti o peso da fralda recheada. Um sujeito com a juba tingida de loiro chega junto, diz que me viu no Fantástico – onde nunca apareci – e que mesmo não sabendo meu nome gostou da iniciativa.

Anonimato, segundo o Aurélio, é o “estado daquilo que é anônimo”; “guardar o anonimato, não se revelar o autor de um fato, de um escrito”. Evidentemente, no meu caso, naquela tarde no calçadão da rua Antônio Agu, em Osasco, eu estava numa situação oposta, exposto como um octópode em um aquário no coração de um dos centros comerciais mais movimentados da Grande São Paulo. Meu nome estava escancarado em uma faixa na nossa tenda-parangolé, convidando as pessoas a chegar junto para uma foto: “Tire uma foto com o grande Arthur Veríssimo!”. E lá estava este escriba provocando a curiosidade da multidão, sendo julgado, acariciado e bombardeado por palavras, afagos e perdigotos. No calçadão de lojas, produtos e serviços, o corpo estranho era nossa tenda de tecidos, estátuas e almofadas made in India. No meio disso, eu era apenas uma picanha maturada, uma chuleta nesse açougue da curiosidade.

Para convocar o pessoal, peguei meu berrante em forma de concha e toquei um som dualém. A multidão anônima cercou a tenda. O primeiro que tomou coragem e se aproximou para sair na foto foi o baiano Raul, que já tinha ouvido falar vagamente sobre minha pessoa –“acho que te vi na IstoÉ, com o Serguei...”. Três jovens se jogam nas almofadas. O mais falante diz que reconheceu minha voz. Um casal não se faz de rogado e, borbulhando alto-astral, me cumprimenta. Débora e Juvenal são sócios da Casa do Cabelo, um salão das cercanias. Juvenal lembra das minhas reportagens para a TV, e comenta passagens deste repórter por China, México, Filipinas, Cuba e, claro, Índia.

“Ele é ator? É indiano? De repente ele tem muito ouro, né? Inxalá!”

“Mas ele não morreu?”
- Ana Paula Macedo

“Pensei que fosse alguém passando trote.”
- Armando Nunes Gomes

“Eu já tinha visto ele no Manhã maior.
Ele faz bastante documentário, né?”

“Não conheço ele, não. Só tirei foto porque ele pediu!”
- Beatriz Rodrigues

“Conheço ele de algum lugar, mas o nome do
programa eu não lembro...”
- Luiz Carlos Dias

“É escritor?”
curiosa não-identificada

“Só quis tirar foto porque achei o cenário legal”

“Vixe, tirar foto com homem feio? Quero não!”
- moça bonita não identificada

Percebo mais sorrisos amistosos no entorno. Luiz Carlos é mais um que me conhece da TV, dessa vez do SBT. “Achei bacana conhecê-lo pessoalmente, ainda mais que eu sou do interior e, pra quem é do interior, tudo é novidade!”

Esgotado de tanto zum-zum, fecho os olhos e entro em estado meditativo. Transcendi intolerâncias, rejeições, desconfianças e estranhamentos. Estava sossegado e relax. Renovado, abri os olhos apenas quando algumas gotas de chuva finalizaram nossa empreitada. Na minha humilde conclusão, deduzi que o anônimo é o típico sujeito que atua para si próprio, pois não se comunica e não troca – e quem não se comunica se trumbica. O anonimato é uma forma de ser apenas mais um, como se nunca fizesse muita diferença se posicionar, opinar individualmente. Uma situação bem diferente da que vivi no calçadão de Osasco.

*Reportagem de Olívia Nachle

Agradecimentos Geeta, Casa 15, Prefeitura de Osasco

O tuk-tuk é coisa nossa

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Depois de percorrer milhas e milhas de Índia, Paquistão, China e Peru a bordo de tuk-tuks (ou riquixás, ou motocars...), nosso repórter excepcional encara seu grande desafio: passear por São Paulo no simpático veículo

Eles estão espalhados por todos os continentes. Pululam por quebradas e por todo o planeta. Fazem parte do dia a dia de viajantes e populações inteiras que aproveitam sua praticidade diariamente. Com visual modesto e retangular, que mais parece um pacote de pão de forma sobre três rodas, tem baixo custo e manutenção simples. O tuk-tuk atende por muitos outros nomes – motocar, auto-rickshaw, trishaw, riquixá – e é um veículo de três rodas muito popular em alguns países da Ásia e da América Latina. Nossa equipe foi às ruas e, com muito estilo, testou em São Paulo a versatilidade e carisma desse triciclo que revolucionou o transporte em regiões carentes do planeta. Para o test drive procuramos a ONG Sertão Bras, que luta para implantar o tuk-tuk por aqui. Na garagem da ONG encontramos um deles, amarelinho, cheio de bossa. E para ganhar as ruas convocamos o piloto mezzo-sikh, mezzo-paquistanês Alex Singh, que, disfarçado de Alex Cassalho, desempenha a função de editor de arte de nossa intercontinental Trip. Sem delongas, Alex Singh tirou de sua kurta (pijamão clássico indiano) uma carteira internacional de habilitação da categoria A, a mesma das motos, que lhe permitiria conduzir o tuk-tuk com intrepidez.

Iniciamos nossa saga pelas ladeiras do bairro paulistano do Pacaembu. Com motor de 150 cilindradas, o bólido se esgoelava nas subidas. Com seu turbante ancestral, Alex Singh reclamava das marchas, pois o tuk-tuk pilotado em Rawalpindi, Lahore e Islamabad era equipado com quatro marchas, ré e motor de um cilindro, do tipo dois tempos. Entendia perfeitamente a colocação de Mr. Singh, afinal os de lá eram mais preparados para o trânsito: nosso modelo segue o padrão dos tuk-tuks peruanos e tailandeses, bem diferente daqueles que circulam pelas ruas de Índia e Paquistão. Quando chegamos na superfície lisa e plana da avenida Dr. Arnaldo, nosso tuk-tuk perdeu a timidez e deslizou solenemente. A aparência exótica do tuk-tuk exalava curiosidade. O escudo e parte da cabine são de metal. Suas laterais e o teto, cobertos por uma lona plástica amarelinha, igual às capotas de jipes e buggies. Bem jeitosinho. Suas janelas são de plástico transparente e móveis. Em outras palavras, uma charrete sofisticada, motorizada e completamente diferente dos veículos que todo mundo está habituado a ver no Brasil. Mr. Singh bufava de prazer ligando, desligando e engatando o tuk-tuk com o pé. Em êxtase, balbuciava palavras em punjabi, urdu, inglês e dialetos camanducaienses.

 

No farol vermelho, uma senhora de cabelos rosa bebê tomou um susto e borrou a maquiagem de tanto gargalhar

 

Entendi apenas quando iniciou um reza forte para o patriarca do siquismo, o guru Nanak. Cortei sutilmente suas orações e pedi para continuarmos logo nossa saga, pois uma marronzinho (fiscal de trânsito) se aproximava. Segundo o fabricante (Motocar) o modelo transporta dois passageiros mais o motorista, e atende a resolução 129 do Contran: “A circulação do triciclo automotor de cabine fechada está restrita às vias urbanas, sendo proibida sua circulação em rodovias federais, estaduais e do distrito; Art. 2. Para circular nas áreas urbanas, sem a obrigatoriedade do uso de capacete de segurança pelo condutor e passageiros, o triciclo automotor com cabine fechada deverá estar dotado dos seguintes equipamentos obrigatórios: freios de estacionamento e de serviço, pisca, cinto de segurança, para-choque traseiro, buzina, velocímetro, limpador de para-brisa, extintor de incêndio, faróis, lanternas e iluminação de placa traseira”. Nossa MTX 150 amarelinha possuía tudo isso e ainda, de quebra, freio a disco na frente e rodas de liga leve.

Na avenida Paulista, o trânsito literalmente parou pra nos ver. Seguíamos conduzidos por um fluxo contínuo de buzinadas, acenos, beijinhos e pedestres fotografando com celulares. Com muito garbo e elegância, Alex Singh cumprimentava a turba enlouquecida. A todo momento, manifestações de afeto e surpresa. Uma senhora de cabelos rosa bebê, sentadinha em um Honda Fit no sinal vermelho, tomou um susto e borrou a maquiagem de tanto gargalhar. Queria saber o preço do bólido de três rodas. Disse que custava R$ 8.950 em Manaus, mas que no Peru saía pela bagatela de R$ 2 mil. A senhora ficou ouriçada com a informação, parecia mesmo querer um. Na Oscar Freire paramos para abastecer em um posto de gasolina. O consumo médio do tuk-tuk é de 30 quilômetros por litro e o tanque comporta 13 litros. Em seguida, paramos em frente ao hotel Emiliano, deixando manobristas e seguranças embaraçados. Não sabiam o que fazer diante daquele paquiderme diferenciado. Conclamei Mister Singh, que com um estrondoso “Yes, Siiiirrrr” engatou e partiu sorridente.

A tarde caía e, em meio a um trânsito pesado, navegávamos pela rua Estados Unidos vagarosamente. Minha memória reluzia lembrando dos antepassados do tuk-tuk. Segundo historiadores, o vocábulo “riquixá” vem da palavra japonesa jinrikisha – que significa “veículo de tração humana”. Os primeiros surgiram em Tóquio em 1868 e facilitaram a vida na cidade. Foi um sucesso. Em 1872 circulavam mais de 40 mil riquixás nas ruelas da capital japonesa. O exemplo espalhou-se por toda a Ásia, transformando o transporte público local para sempre. A evolução seguiu para os clico-riquixás antes de chegar aos triciclos motorizados.

Rolê, sim; táxi, não
Mesmo mostrando-se uma coqueluche em nosso giro, por aqui o veículo vive na clandestinidade, as montadoras não demonstram interesse. Não dá para concorrer com os automóveis, mas poderia ser um bom transporte para áreas de difícil acesso nas periferia das grandes cidades ou em localidades sem transporte público.

Voltando à nossa prazerosa epopeia, era a hora de rumar para o final. De volta à sede da Sertão Bras, a diretora Li An, entusiasta do tuk-tuk, concluiu: “Existem até modelos a gás ou movidos a energia solar. Mas tem muitas dificuldades, como o fato de que nenhuma seguradora quer proteger este amarelinho. A lei atual no Brasil permite que ele circule, mas não que seja utilizado como táxi. No Peru este indomável triciclo revolucionou e facilitou a vida de milhões de pessoas. Circulam mais de 500 mil mototáxis pela selva, costa e serra. Além da economia, leva passageiros, cargas e protege as pessoas do sol, do vento e da chuva a preços módicos”.

Minha monga, meu amor

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João Miranda

Arthur Veríssimo e a Mulher-Gorila

Arthur Veríssimo e a Mulher-Gorila

O dia em que nosso repórter excepcional reviveu seus mais tenros sonhos de infância em plena savana belorizontina em busca da lendária mulher-macaca

Não adiantava se benzer, virar a cara, ter medinho ou ficar de olhos fechados. Era 1975 e os mistérios e enigmas daquela linda moça metamorfoseada em gorila vinham embalados numa atmosfera de medo, atração e repulsa. Aquela tarde no Playcenter não sai de minha memória até hoje. Todos sabíamos que era impossível que aquilo fosse verdade, mas, na dúvida, era sempre melhor sair correndo do que ficar com a macaca. E voltar dali a algum tempo ao parque para tomar outros sustos e rir do desespero alheio – e do nosso próprio.

Eis que, muitas e muitas voltas do mundo depois, eu estava no Parque Guanabara, na lagoa da Pampulha, Belo Horizonte, prestes a entrar novamente numa legítima atração Monga, ao lado da maior expert no assunto no planeta. Há anos, a historiadora e cineasta paulistana Cris Siqueira cruza Brasil e Estados Unidos dentro de circos grandes e pequenos e seus sideshows (os parques anexos) e freakshows (shows de aberrações, legítimas e fake). A paixão de Cris pelo assunto a levou a embarcar no Jim Zajicek’s Big Circus Show e iniciar o documentário Monga – A verdadeira história da mulher-macaca no Brasil e nos Estados Unidos, em fase de produção.

A impecável Monga do Parque Guanabara, Cris garante, é uma das últimas do Brasil. O parque está instalado há mais de 30 anos com todas aquelas atrações tradicionais: roda-gigante, carrossel, trem fantasma, Ciclone, floresta encantada e, a nossa motivação e objeto de desejo, a MONGA!

O dia estava ensolarado e a criançada se esbaldava nos brinquedos. Excitadíssimos, fomos magnetizados por uma majestosa fachada rica em adereços. Admirávamos embevecidos as silhuetas em negrito nas laterais e o imenso rosto do gorila com suas mandíbulas escancaradas quando o time que orquestra o espetáculo da Monga se aproximou. Claudio, o gerente do local, interage com suas duas mirabolantes “mongas” Rosileni e Rayane.

O show da Monga ocorre há cinco anos no Parque Guanabara. A duração da transformação é de quatro minutos e, dependendo do fluxo do público, eles realizam em dias de movimento uma média de 15 espetáculos por hora. O trabalho é pesado. Com o parque aberto das 8 às 21 horas são mais de 120 shows diários.

Cris Siqueira não para de investigar e bisbilhotar. Pergunta sobre detalhes cênicos, performance e participação do público. Emocionada, revela que o nome “Monga” foi criado pelo artista Romeu Del Duque, responsável pela atração original do Playcenter – que durou de 1973 a 1986. Segundo Cris, a atração ficou conhecida a partir de meras duas unidades: uma fixa em São Paulo e outra rodando pelo país. Há uma teoria de que a Monga seria brasileira – e tenha se espalhado pelo mundo com nomes como Conga, Samira e Murza.

Da sua cartola mágica, Cris retira a espectral Lurdez da Luz, a rapper paulista convertida em Monga para nossas lentes e autora da canção-tema do documentário. Na porta de entrada do castelinho da Monga é entoado um chamado do além: “Venha presenciar a fantástica transformação de uma jovem mulher em criatura das trevas: o terrível gorila canibal! Tudo começou quando nossa infortunada jovem participava de um safári no coração da selva africana. Assista à mais assustadora transformação que você já ousou imaginar. Mas cuidado! Apenas os mais corajosos conseguem viver a experiência e manter sua sanidade. Venha acompanhar, passo a passo, como é possível que uma bela jovem, possuída pela maldição, venha a transformar-se em uma criatura apavorante! Muitos pesquisadores tentaram descobrir qual é o mistério existente por trás da incrível transformação, mas todos os esforços foram em vão”.

Como um enxame de abelhas, uma multidão de crianças e seus respectivos pais entram em fila. Uma simbiose de curiosidade sacode os enfileirados. Abre-se a boca do gorila e todos se lançam para o bizarro reduto da Monga. Na diminuta estrutura, a plateia se espreme. A voz do mestre de cerimônia do além ecoa dizendo para todos se prepararem para a transformação, o suspense é rachado quando percebo, ao fundo, nossa Lurdez da Luz dentro de um cubículo fechado por grades. Como uma centopeia, Lurdez se insinua para a plateia com seu biquíni. A metamorfose começa lentamente. Dentro da câmara semiescura, a Monga começa a ficar peluda, suas mãos ficam monstruosas e a plateia se agita. Ela está metade mulher e metade gorila. Os efeitos especiais são requintados. Parte do público se borra de medo e outros dão risadinhas contidas. O MC grita: “Fera, desperte!”, e, numa fração de segundo, o gorilão solta um urro pavoroso. Salta da jaula e vai pra cima, ameaçando a plateia. Sua aparição é um “deus nos acuda”.

Fico congelado nas extremidades. A encenação é impecável e me traz à mente todas as Mongas que já vivi e amei. A trilha sonora é superada por gritos, berros, gemidos e corre-corre. No embalo, o MC acalma a Monga, e sua fúria é controlada. O gorilão retorna para a jaula e num piscar tudo volta à normalidade.

"Uma energia das entranhas da natureza me domina. Entro no transe da monga e sofro a mutação genética"

O espetáculo é rapidinho, mas os efeitos colaterais permanecem. Nos bastidores, não resisto e imploro ao organizador para realizar o sonho de me transformar em macaco. Recebo sinal verde. Tiro da mochila minha bata de Fred Flintstone e vou para o cubículo. Uma energia das entranhas da natureza me domina. Parece brincadeira, mas entro no transe da Monga e sofro a mutação genética. Viro a macaca. Não mordo ninguém e volto ao meu estado relaxado de repórter excepcional.

No lado de fora, Cris, freneticamente, esclarece que esse truque de ilusionismo conhecido como “pepper’s ghost” foi criado na Inglaterra no século 19, baseado em jogo de espelhos. E completa, misteriosa: “Eu acredito que algumas mulheres tenham o poder de se transformar em macaca. Para mim essas são as Mongas verdadeiras, não as mulheres com hipertricose (excesso de pelos no corpo). As Mongas verdadeiras andam disfarçadas de Mongas falsas. Você acha que tem lá o show montado, fantasia de macaca, mágica de palco, mas não tem nada disso, tudo fachada. Só que não dá para saber quem é quem. Se eu topar com uma Monga verdadeira, vou fingir que é falsa. Do mesmo jeito que não revelo o segredo da transformação, não vou revelar o segredo delas”.

E eu deixo o parque com a dúvida: quem será a Monga verdadeira? Cris Siqueira ou Lurdez da Luz? O mistério continua...

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